Participação Indigna na Ceia

Alguns, querendo preparar os homens para a digna participação do sacramento, têm afligido  e  atormentado  cruelmente  as  pobres  consciências,  sem  todavia  lhes ensinarem nada do que é necessário ensinar. Dizem eles que para comer dignamente a Ceia é preciso estar em estado de graça. E interpretam que estar em estado de graça é estar purificado de todo pecado.

Por esse ensino, todos os homens que estiveram e estão na terra seriam excluídos do uso deste sacramento. Porque, se é questão de  considerarmos a nossa dignidade em nós, significa que esta é feita por nós! Isso só nos pode causar ruína e confusão. Ainda que  nos  empenhemos  com  todas  as  nossas  forças,  nada  conseguiremos,  senão que acabaremos  sendo  mais  indignos  ainda,  isso  quando  a  duras  penas lograrmos encontrar alguma dignidade em nós.

Para tentar curar esse mal, inventaram um meio de adquirir dignidade. É o seguinte: Havendo  nós  examinado  devidamente  a  nossa  consciência,  expurgamos  a  nossa indignidade  pela  contrição,  pela  confissão  e  pela  satisfação.1  Dissemos  acima,  no lugar  mais  apropriado  para  tratamento  deste  assunto,  de  que  maneira  se  dá  esse expurgo  ou  purificação.  No  que  se  refere  ao  presente  propósito,  digo  que  esses remédios  e  consolos  são  por  demais  pobres  e  frívolos  para  as  consciências perturbadas,  abatidas,  aflitas  e  aterradas  pelo  horror  do  seu  pecado.  Porque,  se  o Senhor, para sua defesa, não admite à participação da sua Ceia ninguém que não seja justo e inocente, é necessária não pequena segurança para tornar alguém certo de que possui  a  justiça  que  ouviu  dizer  que  Deus  exige.  E  como  se  poderá  confirmar  a segurança de que aqueles que se julgam em dia com Deus fizeram o que está em seu poder fazer? E ainda quando isso fosse possível, quando será que alguém se atreverá a  garantir  que  fez  tudo  o  que  pôde?  Dessa  maneira,  sendo  que  não  nos  é  oferecida nenhuma  segurança  certa  e  clara  da  nossa  dignidade,  continuará  para  sempre fechada e trancada a porta de entrada para o recebimento do sacramento por aquela proibição  horrível  que  importa  em  que  comem  e  bebem  juízo  para  si  aqueles  que comem e bebem indignamente do sacramento.2

1 Ação pela qual se repara uma ofensa ou um pecado. “Satisfação sacramental”, preces ou práticas impostas pelo confessor ao penitente. NT

2 “Chegamos, porém, à seguinte pergunta: Quando Paulo nos intima a um auto-exame, qual seria a natureza disto? A conclusão dos papistas é  que  isto  consiste  em  confissão  auricular.  Ordenam  a  todos  os  que  estão  para  receber  a  Ceia  a  examinarem  suas  vidas  cuidadosa  e minuciosamente, a fim de que aliviem-se de todos os seus pecados aos ouvidos de um sacerdote. Eis o seu método de preparação! Mas, quanto a mim, defendo a tese de que o santo exame de que Paulo está falando está muito longe de ser tortura. Tais pessoas acreditam que ficam  limpas  depois  de torturar suas  consciências  por  algumas  poucas  horas e então  permitem  que o  sacerdote  entre em seus recessos secretos e descubra suas infâmias. O que Paulo requer aqui é outro gênero de exame, aquele exame que corresponde ao uso apropriado da Santa Ceia.

“Eu tenho um método de preparação mais eficaz ou mais fácil a apresentar-lhe, a saber: se o leitor deseja extrair os benefícios próprios deste dom de Cristo, então cultive em seu coração fé e arrependimento. Daí, para que o leito se apresente bem preparado, o exame precisa estar baseado nestes dois elementos. No arrependimento incluo o amor, pois é indubitável que a pessoa que aprendeu a negar-se a fim de devotar-se a Cristo e ao seu serviço, também se entregará de corpo e alma à promoção da unidade que Cristo nos recomendou. Aliás, o que se exige não é fé perfeita ou arrependimento perfeito. Isto é enfatizado por causa de algumas pessoas, pois ao insistirem demais por uma perfeição que não pode ser encontrada em parte alguma, outra coisa não fazem senão pôr barreira entre cada homem e cada mulher e a Ceia para sempre. Mas se o leitor é sério em sua intenção em aspirar a justiça de Deus, e se, humilhando-se ante a consciência de sua própria miséria, você recorre à graça de Cristo, e descansa nela, esteja certo de que é um convidado digno de aproximar-se desta Mesa. Ao afirmar que você é digno, estou dizendo que o Senhor não o deixa fora, ainda que em outros aspectos você não esteja como deveria. Porque a fé, ainda que imperfeita, transforma o indigno em digno.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 11.28), p. 363-364]. NE

FONTE: As Institutas – volume 4, João Calvino, Cultura Cristã, pág. 28-9

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