A Consonância das Promessas da Lei e do Evangelho

XVII – 11ª Explanação – NÃO DISCREPAM, NEM CONFLITAM, PAULO E TIAGO NO TOCANTE À RELAÇÃO DE FÉ E OBRAS

Mas, deveras, dizem mais de dificuldade ainda resta-nos com Tiago, como quem nos contradiga abertamente. Pois, ensina [ele] que não só “foi Abraão justificado pelas obras” [Tg 2.21], como também nós todos somos justificados pelas obras, não somente pela fé [Tg 2.24]. Quê, portanto? Arrastarão, porventura, Paulo a um conflito com Tiago? Se a Tiago têm por ministro de Cristo, assim se lhe deve tomar a asserção que não dissinta de Cristo falar pela boca de Paulo. Declara o Espírito pela boca de Paulo que pela fé, não pelas obras, alcançou Abraão a justiça [Rm 4.3; Gl 3.6], [pelo que] nós também ensinamos serem todos justificados pela fé, sem as obras da Lei. Ensina o mesmo Espírito através de Tiago que não só [a justiça] de Abraão, mas também a nossa justiça, se embasam nas obras, não apenas na fé. Que o Espírito não conflita Consigo [próprio], é certo. Qual lhes será, portanto, a forma de conciliação?

A [nossos] adversários é plenamente suficiente, se hajam erradicado a justiça da fé que nós queremos firmada com raízes as mais profundas, mas restaurar sua tranqüilidade às consciências, não [lhes] é de grande preocupação. De onde vejas que, na verdade, corroem eles a justificação pela fé, entrementes, meta nenhuma estabelecem de justiça, onde se atenham as consciências. Celebrem, pois, triunfo, como [lhes] apraz, desde que de outra vitória não se possam jactar que de haverem suprimido toda certeza de justiça! E esta mísera vitória obtê [-la]-ão, de fato, quando, apagada a luz da verdade, permitir-lhes-á o Senhor derramarem as trevas de [suas] falsidades. Mas, onde quer que firme se haverá a verdade de Deus de postar nada de proveito haverão [eles] de fruir!

Nego, destarte, que a postulação de Tiago, que persistentemente nos confrontam, como se o escudo de Aquiles [fosse], lhes propicie sequer o mínimo apoio. Para que isto se faça manifesto, ter-se-á de atentar, primeiro, para o escopo do Apóstolo, em seguida, de observar onde delirem [eles]. Uma vez que havia muitos então, [o] que costuma ser um mal perpétuo na Igreja, que punham abertamente à mostra sua infidelidade, negligenciando e deixando de lado todas e quaisquer obras que são próprias dos fiéis, contudo, não cessavam de gloriar-se do falso nome de fé, aqui ridiculariza Tiago a estulta confiança de tais [indivíduos]. Portanto, não tem ele o propósito de, em qualquer aspecto, enfraquecer a força da verdadeira fé, ao contrário, de mostrar quão ineptamente esses paroleiros tanto lhe arrogariam à vazia imagem que, contentes com esta, abandonar-se-iam despreocupadamente a todo desbragamento de vícios.

Percebida esta condição, fácil notar onde tropecem nossos adversários. Ora, incidem [eles] em duplo paralogismo: um na palavra fé, outros no termo justificar. Que o Apóstolo está a chamar fé a uma opinião inane, assaz distanciada da verdade da fé, é [à guisa] de concessão que nada derroga à causa, [o] que demonstra ele desde o início com estas palavras: “Quê aproveita, meus irmãos, se alguém diga ter fé, mas não tenha obras?” [Tg 2.14]. Não diz: “Se alguém tenha fé sem obras”, mas, “se [alguém] se jacte [de tê-la]”. Ainda mais claramente pouco depois, onde, em ironia, [a] faz pior eu o conhecimento diabólico [Tg 2.19] [e], finalmente, onde [a] chama de `morta’ [Tg 2.20]. Mas, da [própria] definição [que lhe dá] hajas de suficientemente depreender quê queira [ele significar]. “Tu crês”, diz [ele], “que há Deus” [Tg 2.19]. Obviamente, se nada nessa fé se contém senão que se creia haver um Deus, já nada é de admirar se não justifique. Nem, quando isto se lhe detrai, pensemos, com efeito, algo derrogar-se à fé cristã, da qual assaz diversa é a natureza. Pois, de que modo a verdadeira fé justifica, senão enquanto nos vincula a Cristo, de sorte que, feitos um com Ele, fruamos de participação de Sua justiça? Logo, não por isso justifica ela, porque conceba um conhecimento da essência divina, mas porque descansa na certeza da [Sua] misericórdia.

XVII – 12ª – TIAGO E PAULO USAM O TERMO JUSTIFICAÇÃO EM ACEPÇÕES DIVERSAS, AQUELE REPORTANDO-SE AO ASPECTO TESTEMUNHAL DA FÉ (PENHOR DA JUSTIFICAÇÃO), ESTE AO ASPECTO IMPUTACIONAL (MEIO DE JUSTIFICAÇÃO)

Ainda não havemos atingido a meta, a menos que discutamos também o outro paralogismo: se, na verdade, Tiago põe uma parte da justificação nas obras. Se queiras fazer Tiago concorde não apenas com as demais Escrituras mas também consigo próprio, necessário é tomar o termo justificar em outra acepção que em Paulo. Pois, por Paulo se diz sermos [nós] justificados quando, obliterada a lembrança de nossa justiça [própria], somos reputados justos. Se nessa direção houvesse Tiago mirado, teria [ele] citado preposteramente essa [asserção] da parte de Moisés: “Abraão creu em Deus”, etc. [Tg2.23; Gn 15.6], pois assim arrazoa: Abraão alcançou a justiça pelas obras, por que, ordenando[-o] Deus, não hesitou em imolar o filho [Tg 2.21], e assim, se cumpri a Escritura que diz “haver ele crido em Deus e [isso] lhe [haver sido] imputado por justiça” [Tg 2.23]. Se é absurdo que o efeito haja sido anterior à sua causa, ou Moisés testifica falsamente nessa passagem que a fé havia sido imputada a Abraão para justiça, ou dessa obediência que exibiu em oferecendo Isaac não mereceu [ele] a justiça. Ainda não concebido Ismael, já havia chegado à adolescência antes que Isaac nascesse, justificado havia sido Abraão por sua fé. Como, portanto, diremos haver [ele] para si granjeado a justiça mercê de uma obediência que se seguiu longo tempo depois? Pelo que, ou Tiago inverteu incoerentemente a ordem, [o] que não é justo pensar, ou, justificado, não quis [assim] dizê[-lo], como se haja merecido que fosse considerado justo. Quê, pois? É, por certo, evidente que está ele a falar de declaração de justiça, não, contudo, de [sua] imputação, como se estivesse a dizer: [Aqueles] que são justos mercê de verdadeira fé, esses provam sua justiça através da obediência e das boas obras, não mediante desnudo e imaginário espectro de fé.

Em síntese, [Tiago] não está a discutir de que maneira sejam justificados, mas a exigir dos fiéis uma justiça que produza obras. E como Paulo contende ser [mos] justificados sem o concurso das obras, assim aqui não concede [Tiago] estejam tidos [como] justos [os] que careçam de boas obras. A consideração deste escopo desvencilhar-nos-á de toda dificuldade, pois que daqui precipuamente se enganam os nossos adversários, que pensam que Tiago está a definir a maneira da justificação, quando outra cousa não diligencie que demolir a prava segurança daqueles que, para desculpar o desprezo das boas obras, vãmente pretextavam a fé. Portanto, em todos e quaisquer modos que torçam as palavras de Tiago, nada expressarão senão duas proposições: que um inane simulacro de fé não justifica e que o fiel, não contente com tal mistificação, declara sua justiça mediante [suas] boas obras.

Fonte: CALVINO, João. As Institutas ou tratado da religião cristã

Trad.Waldyr Carvalho Luz, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, S/C, 1989 1ª ed.

Edição em quatro volumes – Volume III, Capitulo XVII, 11 e 12ª

explanação sobre A consonância das promessas da lei e do evangelho, pp. 278-280

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Captcha carregando...