O Espírito Católico

E partindo dali, achou a Jonadabe, filho de Recabe, que se lhe fez encontradiço, e Jeú o saudou. E lhe disse: Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com o teu coração? E Jonadabe respondeu: Tenho. Se assim é, disse Jeú, dá-me a tua mão (II Rs. 10:15).

I. Consideremos a questão proposta por Jeú a Jonadabe: “Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com teu coração?”

II. “Se assim é, dá-me a tua mão”, ame toda a humanidade, teus inimigos, os inimigos de Deus, os estranhos, com um irmão em Cristo.

III. Podemos aprender o que seja o espírito católico.

1. É FATO reconhecido, mesmo por aqueles que não pagam este grande tributo, que o amor é devido a toda a humanidade; a lei real: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, demonstra sua própria evidência a todos que a ouvem: e isto, não segundo a miserável construção levantada sobre ela pelos fanáticos dos velhos tempos: – “Amarás a teu próximo”, teus parentes, conhecidos, amigos, e “aborrecerás a teu inimigo”. Não assim – “eu vos digo” afirma nosso Senhor: “Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos amaldiçoam, fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem, para que possais ser filhos” – possais aparecer assim a toda a humanidade – “de vosso Pai celestial, que faz levantar-se seu sol sobre os maus e os bons e cair a chuva sobre os justos e os injustos.”

2. Mas é certo que há um amor especial que devemos aos que amam a Deus. Assim Davi: “Todo meu prazer está nos santos que estão sobre a terra e sobre os que excelem em virtude”. E assim um que é maior do que ele: “Um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei, que vós vos ameis também uns aos outros. Nisto os homens conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (João XIII:34, 35.) Este é o  amor em que o apóstolo João tão freqüente e tão energicamente insiste: “Esta” – diz ele – é a mensagem que tendes ouvido desde o princípio, que nos amemos uns aos outros” (1 João III : 11) . – Por isto conhecemos o amor, porque Cristo deu a sua vida por nós; e nós devemos”, se o amor nos chamar a isso, “dar a vida pelos irmãos” (versículo 16). E outra, vez: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus. Quem não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor” (IV:7, 8). “O amor consiste, não em termos nós amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós e enviou a seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, devemos também amar-nos uns aos outros” (versículos 10 e 11).

3. Todos os homens aprovam isto; mas todos os homens o praticam? A experiência diária mostra o contrário. Onde os cristãos que “se amam uns aos outros como Ele nos ordenou”? Quantos tropeços se acumulam no caminho! Os dois grandes empecilhos gerais são: primeiro, não poderem todos os homens pensar do mesmo modo; e, em conseqüência disto, não poderem eles, em segundo lugar, agir de modo igual; mas nos mínimos detalhes de sua prática devem diferir em proporção à diversidade de seus sentimentos.

4. Mas, embora a diferença de opiniões ou de formas de culto possa obstar a completa união orgânica, deve tal diferença impedir nossa unidade de sentimentos? Embora não possamos pensar do mesmo modo, não podemos amar de maneira igual? Não podemos ter um só coração, ainda que não tenhamos uma opinião só? Sem dúvida alguma que o podemos. Nisto todos os filhos de Deus podem unir-se, não obstante aquelas diferenças secundárias. Permaneçam estas como estão, e ainda os crentes podem-se acompanhar uns aos outros no amor e nas boas obras.

5. Certamente que, neste sentido, o exemplo do próprio Jeú, caráter tão desigual como era, é bem digno de atenção e de imitação por parte de todo cristão honesto. “E partindo dali, achou a Jonadabe filho de Recabe que se lhe fez encontradiço, e Jeú o saudou. E lhe disse: Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com o teu coração? E Jonadabe respondeu: Tenho. Se assim é, disse Jeú, dá-me a tua mão”.

O texto se divide naturalmente em duas partes: primeiro, a questão proposta por Jeú a Jonadabe: “Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com o teu coração?” Segundo, a oferta feita em vista da resposta de Jonadabe: “Tenho”; “Se assim é, dá-me a tua mão”.

I

1. E, primeiro, consideremos a questão proposta por Jeú a Jonadabe: “Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com teu coração?”

A primeira coisa que observamos nestas palavras, é que não se faz aí nenhum inquérito em torno das opiniões de Jonadabe. É certo, todavia, que algumas ele as sustentava e que eram muito invulgares, e mesmo bastante originais; nutria algumas opiniões que exerciam larga influência sobre sua conduta, opiniões a que imprimia, ao mesmo tempo, grande destaque, a ponto de as inculcar aos filhos de seus filhos, até a derradeira posteridade. Isto evidentemente ressalta do relato feito por Jeremias, muitos anos depois da morte daquele. “E tomei Jezonias e seus irmãos, e todos os seus filhos, e toda a casa dos Recabitas – e pus diante dos filhos da casa dos Recabitas taças cheias de vinho e copos, e disse-lhes: bebei vinho. Mas eles responderam: Não beberemos vinho, porque Jonadabe”, ou Jeonadabe, “filho de Recabe, nosso pai” (ficaria mais claro o texto se dispuséssemos as palavras nesta ordem: “Jonadabe, nosso pai, filho de Recabe”. Em prova de amor e reverência a Recabe, Jonadabe provavelmente desejava que seus descendentes lhe conservassem o nome), “nos mandou, dizendo: não bebereis vinho, nem vós, nem vossos filhos, nunca jamais. E não edificareis casa, nem semeareis sementeiras, e vinhas não plantareis, nem as possuireis, mas habitareis em tendas todos os dias de vossa vida. Temos, pois, obedecido e feito de acordo com tudo quanto Jonadabe, nosso pai, nos mandou”. (Jer. XXXV:3-10.)

2. E Jeú, todavia, (embora pareça ter sido violenta sua maneira própria de conduzir-se, tanto em assuntos seculares como em questões religiosas), não se preocupa de modo nenhum com qualquer dessas coisas, mas deixa que Jonadabe persista em seus próprios sentimentos. Nenhum deles parece ter dado ao outro a menor preocupação no tocante às opiniões que sustentavam.

3. É muito possível que muitos homens bons agora também sustentem opiniões particulares; e alguns podem tê-las de espécie tão singular como eram as de Jonadabe. É certo, conquanto conheçamos apenas em parte, que todos os homens não vêem todas as coisas do mesmo modo. É uma conseqüência inevitável da presente fraqueza e limitação do entendimento humano, que os diversos homens sejam de, espírito diverso no tocante à religião, assim como nas coisas da vida comum. Assim tem sido desde o começo do mundo e assim será “até a consumação de todas as coisas”.

4. Ainda mais: embora todo homem necessariamente creia que toda opinião particular que sustente seja verdadeira (porque, admitir que uma opinião não seja verdadeira, é o mesmo que repudiar a essa opinião), não pode, contudo, todo homem estar seguro de que todas as suas opiniões, tomadas em conjunto, sejam verdadeiras. Nem pode homem algum de raciocínio estar seguro de que elas não sejam verdadeiras, visto que humanum est errare et nescire: “Ser ignorante de muitas coisas e errar em algumas, é a condição necessária da humanidade.” Disto, pois, o homem é cônscio, sendo tal seu próprio caso. Conhece, de modo geral, que está errado, embora não saiba em que ponto esteja errado – e talvez nem possa sabê-lo.

5. Digo: “talvez nem possa sabê-lo”, porque – quem pode dizer até onde vai a ignorância invencível? ou (o que vem a ser a mesma coisa), o preconceito invencível, que com freqüência se acha tão impresso na mente maleável, que se torna depois impossível extirpar o que se enraizou tão profundamente? E quem pode dizer, a menos que conheça todas as circunstâncias que o envolvam, até que ponto um erro é culpável? Desde que toda culpa deve pressupor alguma concorrência da vontade, desta somente pode ser juiz Aquele que esquadrinha os corações.

6. Todo homem prudente concederá, pois, aos outros a mesma liberdade de pensamento que deseja lhe concedam os outros homens, e não insistirá mais em que eles lhe abracem as opiniões do que desejaria que eles insistissem por que abraçasse as suas. Tolera os que dele diferem e somente propõe àquele com quem deseja unir-se em amor uma questão única: “Porventura tens tu o coração reto, como o meu o é com teu coração?”

7. Podemos, em segundo lugar, observar que não se encontra ai nenhum inquérito em torno da forma de culto observada por Jonadabe, embora seja muitíssimo provável que houvesse, também a esse respeito, muito grande diferença entre eles. Bem podemos crer que Jonadabe, assim como toda sua posteridade, prestasse culto a Deus em Jerusalém, conquanto Jeú o não fizesse; este dava mais atenção à política do Estado do que à religião. E, assim, embora ele houvesse perseguido os adoradores de Baal e houvesse exterminado de Israel o culto de Baal, todavia não se apartou do cômodo pecado de Jeroboão – o culto dos bezerros de ouro, (2 Reis X:29.)

8. Mesmo entre os homens de coração firme, homens que desejam “ter uma consciência livre de ofensa”, necessariamente deve acontecer que, dada a existência de várias opiniões, também haja vários modos de prestar culto a Deus, já que a diversidade de opiniões necessariamente implica em diversidade de prática. E como,  em todas as eras, nada houve sobre que os homens divergissem tanto em suas opiniões como no tocante ao Ser Supremo, assim em coisa alguma não diferem mais uns dos outros do que na maneira de lhe prestar culto. Se isto se houvesse verificado somente no mundo pagão, não seria motivo de espanto, porque sabemos que os pagãos, “por” sua “sabedoria não conheceram a Deus% nem puderam, consequentemente, saber como adorá-lo. Mas não é estranho que, mesmo no mundo cristão, embora todos concordem com o princípio geral: “Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade”, se encontrem, nos modos particulares de render culto a Deus, quase tantas variações como entre os pagãos.

9. E como poderíamos escolher entre tal variedade? Nenhum homem pode escolher para outro ou prescrever-lhe uma ou outra forma, mas cada um deve seguir os ditames de sua própria consciência, em simplicidade e piedosa sinceridade. Deve estar persuadido em sua própria mente e depois agir de acordo com a melhor iluminação que possuir. Nem possui criatura alguma o poder de determinar que outro homem ande segundo sua própria regra. Deus não deu direito a nenhum dos filhos dos homens, de assenhorear-se desse modo da consciência de seus irmãos; cada um deve, porém, julgar por si mesmo, assim como cada um deve dar contas de si mesmo a Deus.

10. Embora todo seguidor de Cristo seja, pois, obrigado, pela própria natureza da instituição cristã, a tornar-se membro de uma ou de outra congregação particular, de alguma igreja, como usualmente se chama, (o que implica num modo particular de’ render culto a Deus, porque “dois não podem andar juntos, a não ser que estejam de acordo”), todavia, ninguém pode ser obrigado, por nenhum poder da terra, a não ser pelo de sua própria consciência, a preferir esta ou aquela congregação a outra, a preferir esta ou aquela forma peculiar de culto. Sei que comumente se supõe isto; que o lugar de nosso nascimento decide da igreja a que devamos pertencer; que alguém, por exemplo, quem nasceu na Inglaterra, deve pertencer à chamada Igreja da Inglaterra, e, consequentemente, deve adorar a Deus do modo especial que aquela igreja prescreve. Fui outrora zeloso partidário desta idéia, mas encontrei muitas razões para libertar-me desse zelo. Temo que isto acarrete tantas dificuldades, que nenhum homem de raciocínio possa vencer. Se, afinal, aquela regra tivesse sido observada, nenhuma reforma se teria operado em oposição ao papismo, visto que este inteiramente destrói o direito de juízo privado, principio sobre que descansa toda a Reforma.

11. Não cuido, pois, de acalentar a presunção de impor meu sistema de culto a quem quer que seja. Creio que ele é verdadeiramente primitivo e apostólico: minha crença não é, entretanto, regra para os outros. Não pergunto, pois, àquele com quem eu quisera unir-me em amor: És de minha igreja? De minha congregação? Recebes a mesma forma de governo de igreja e admites comigo os mesmos oficiais? Unes-te comigo na mesma forma de oração pela qual presto culto a Deus? Não pergunto: Recebes a Ceia do Senhor na mesma posição em que a recebo e de maneira igual? Nem pergunto se, na forma de batismo, tu concordas comigo em admitir padrinhos para o batizando, na maneira de o administrar, ou no tocante à idade daqueles a quem deve ser administrado. Nem pergunto (tão desprevenida tenho a própria mente), se recebes mesmo, de qualquer modo, o batismo e a ceia do Senhor. Fiquem de lado todas essas coisas; falaremos delas, se necessário, em ocasião mais oportuna; minha pergunta única, no presente, é esta: “Por­ ventura tens tu o coração reto, como o meu o é com teu coração?”

12. Mas, o que se acha implícito nesta questão? Não pergunto o que Jeú entendia estar implícito nela: pergunto o que entenderá o seguidor de Cristo que ela abranja, quando a propõe a qualquer de seus irmãos?

A primeira coisa que a pergunta envolve é esta: Teu coração é reto para com Deus? Crês em sua existência, em suas perfeições? Sua eternidade, imensidade, sabedoria, poder? Sua justiça, misericórdia e verdade? Crês que Ele “sustenta todas as coisas pela palavra de seu poder”, e que Ele governa mesmo as coisas mínimas, as mais nocivas, para sua glória e para o bem dos que o amam? Tens a divina evidência, a convicção sobrenatural, das coisas de Deus? “Andas pela fé e não por visão”? Buscas as coisas eternas, e não as temporais?

13. Crês no Senhor Jesus Cristo, “Deus sobre todas as coisas, bendito para sempre”? Revelou-se Ele à tua alma? Conheces a Jesus Cristo, e este crucificado? Habita Ele em ti e tu nele? Formou-se Ele em teu coração pela fé? Tendo de todo renunciado a todas as tuas obras, à tua própria justiça, tu “te submeteste à justiça de Deus”, que é pela fé em Cristo Jesus? Estás “fundado nele, não tendo tua própria justiça, mas a justiça que é pela fé”? E estás, por meio dele, “combatendo o bom combate da fé e apoderando-te da vida eterna”?

14. Tua fé está energoumenE di’ agapEs, cheia da energia do amor? Amas a Deus (não digo “acima de todas as coisas”, que é uma expressão a um tempo não-bíblica e ambígua, mas) “de todo o teu coração, e de toda a tua mente, e de toda a tua alma, e de toda a tua força”? toda tua felicidade tu a buscas somente nele? E encontras aquilo que procuras? Tua alma constan­temente “engrandece ao Senhor e teu espírito se alegra em Deus, teu Salvador”? Tendo aprendido “a dar graças em todas as coisas”, achas que “é coisa agradável e confortadora ser agradecido”? Deus é o centro de tua alma, a suma de todos os teus desejos? Estás, em conseqüência, ajuntando teu tesouro no céu, e reputando todas as outras coisas como esterco e escória? O amor de Deus expulsou de tua alma o amor do mundo? Estás então “crucificado para o mundo”, estás morto para o que é cá de baixo e tua “vida está escondida com Cristo em Deus”.

15. Estás empenhado em fazer, não tua própria vontade, mas a vontade daquele que te enviou, daquele que te fez descer à terra para aqui habitares por um pouco, para passares alguns dias num país estranho, até que, feita a obra que Ele te encarregou que fizesses, voltes para a casa de teu Pai? Tua comida e tua bebida é “fazer a vontade de teu Pai que está nos céus”? Teus olhos são simples em todas as coisas? Estão sempre fixos em Deus? Estão sempre voltados para Jesus? Apontas para Ele em qualquer coisa que fazes – em todo teu trabalho, teus negócios, tua conversação – ambicionando somente a glória de Deus em tudo: “o que quer que faças, seja em palavra ou obra, fazes tudo em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus, o Pai, através dele”?

16. O amor de Deus te constrange a servi-lo com temor, “a regozijar-te nele com reverência”? Tens maior medo de desagradar a Deus do que da morte ou do’ inferno? Para ti nada há tão terrível como o pensamento de ofender os olhos de sua glória? Fundado nesse sentimento, “odeias todos os maus caminhos”, toda transgressão de sua lei santa e perfeita, e nisto “te exercitas, para teres uma consciência livre de ofensa, para com Deus e para com o homem”?

17. Teu coração é reto para com teu próximo? Amas, como a ti mesmo, a toda a humanidade, sem exceção? “Se somente amas àqueles que te amam, que recompensa tens?” Amas a “teus inimigos”? Tua alma está cheia de boa vontade, de terna afeição para com eles? Amas ainda aos inimigos de Deus, aos ingratos e ímpios? Tens o coração comovido por sua causa? Podes “desejar” ser temporariamente “maldito” por causa deles? E mostras este sentimento “bendizendo aos que te amaldiçoam e orando pelos que te maltratam e te perseguem”?

18. Mostras teu amor pelas tuas obras? Se tens ocasião, segundo as oportunidades que se te ofereçam, fazes de fato o “bem a todos os homens”, vizinhos ou forasteiros, amigos ou inimigos, bons ou maus? Fazes a eles todo o bem que possas fazer, procurando suprir-lhes as faltas, auxiliando-os no corpo e na alma, no máximo de tuas forças? Se estás assim disposto, que todo cristão diga – se disto estás sinceramente desejoso, rumo a semelhante alvo encaminhando-te, até que o alcances – que todo cristão diga: “Teu coração é reto, como o é o meu com teu coração.”

II

1. “Se assim é, dá-me a tua mão”. Não quero dizer: “Sê de minha opinião”. Não tens necessidade disso: não o espero. nem desejo. Nem quero significar: “Serei de tua opinião”. Não posso fazê-lo: isto não depende de minha escolha. Não posso pensar à minha vontade mais do que posso ouvir ou ver. Guarda tua opinião; eu guardarei a minha – e isto tão firmemente como nunca. Não tens necessidade de tentar a passagem para meu lado, nem levar-me contigo para tua banda. Não desejo que discutas aqueles pontos, nem ouvir ou falar uma palavra relativa a eles. Fiquem todas as opiniões isoladas de um e de outro lado: somente – “dá-me a tua mão”.

2. Não quero dizer: “Abraça minhas fórmulas de culto”, ou “Abraçarei as tuas fórmulas”. Também isto não é coisa que dependa de minha ou de tua escolha. Ambos devemos agir segundo cada um esteja persuadido em sua própria mente. Guarda firmemente aquilo que crês seja mais aceitável a Deus e eu farei o mesmo. Creio que a forma Episcopal de governo da Igreja é bíblica e apostólica. Se pensas que a forma Presbiteriana ou Independente seja melhor, continua a pensar assim e procede de modo condizente com tal crença. Creio que as crianças devem ser batizadas, e que isso se pode fazer tanto por imersão como por aspersão. Se estás persuadido diversamente, assim seja; segue tua própria convicção. Parece-me que as fórmulas de oração sejam de excelente resultado, principalmente no culto público. Se julgas que a oração extemporânea seja de maior valia, procede segundo teu próprio conceito. Minha convicção é a de que não devo impedir a água, onde quer que haja pessoas que devam ser batizadas; e que devo comer pão e beber vinho. Em memória de meu Senhor expirante; entretanto, se não estás convencido disso, procede de acordo com a luz que haja em ti. Não tenho intenção de contender contigo, sequer por um momento, acerca dos assuntos precedentes. Que todos esses pontos menores permaneçam de lado. Que eles jamais venham a debate. “Se teu coração é como o meu coração”; se amas a Deus e a toda a humanidade, não peço mais: “Dá-me a tua mão”.

3. Quero dizer, primeiro, que me ames: e isto não somente como tu amas a toda a humanidade; não somente como tu amas a teus inimigos; ou aos inimigos de Deus, aos que te odeiam, que “te maltratam e te perseguem”; não somente como a uni estrangeiro, como alguém de quem não sabes nem o bem, nem o mal; não fico satisfeito com isto, não: “se teu coração for reto, como o é o meu para com teu coração ama-me, pois, com o maior afeto; como a um amigo mais íntimo do que um irmão; como um irmão em Cristo, um concidadão da Nova Jerusalém, um camarada empenhado no mesmo combate, sob as ordens do mesmo General de nossa Salvação. Ama-me como a um companheiro no reino e na paciência de Jesus e co-herdeiro de sua glória.

4. Ama-me (mas de maneira mais fervente do que amas ao grosso da humanidade), com um amor que é longânimo e benigno; que é paciente, se me mostrar ignorante ou transviado do caminho, aliviando-me e não avolumando meu tardo; e é ainda terno, suave e compassivo; que não inveja, se em qualquer tempo for do agrado de Deus fazer que eu prospere mais em sua obra do que nela prosperas. Ama-me com amor que não se irrita, seja com minhas loucuras e imperfeições, seja com meus atos em desacordo com a vontade de Deus (se eles alguma vez te parecerem tais). Ama-me de modo que não penses mal de mim, de modo a pôr à margem todo ciúme e suspeitas mas. Ama-me com amor que tudo suporta; que nunca revela minhas faltas ou fraquezas; que tudo crê, desejando sempre pensar o melhor, levantando sempre os mais belos edifícios sobre todas as minhas palavras e ações; que tudo espera, julgando que as coisas que se dizem nunca se deram, ou não se verificaram nas circunstâncias relatadas, ou, pelo menos, que houvesse em sua prática uma boa intenção, ou que interviesse um assalto súbito de tentação. E espera até o fim que, seja o que for que haja de errado, será, pela graça de Deus, corrigido; o que houver ern falta será suprido pelas riquezas de suas misericórdias, em Cristo Jesus.

5. Quero dizer, em segundo lugar, que me encomendes a Deus em todas as tuas orações; que lutes com Ele em meu favor, para que eu possa corrigir prontamente o que ele veja de errado e suprir o que falta em mim. Em tua mais fervorosa aproximação do trono da graça, pede Aquele que estará então mui de perto presente contigo, que meu coração esteja mais unido ao teu coração, seja mais reto diante de Deus e diante dos homens; que eu possa ter uma convicção perfeita das coisas invisíveis e um conceito mais forte do amor de Deus em Cristo Jesus; possa mais firmemente andar pela fé e não por visão; e mais resolutamente me apodere da vida eterna. Ora por que o amor de Deus e de toda humanidade se derrame em maior abundância em meu coração; que eu possa ser mais ardente e ativo no fazer a vontade de meu Pai que está nos céus; mais zeloso de boas obras e mais cuidadoso de abster-me de toda aparência do mal .

6. Quero dizer, em terceiro lugar, que me incites ao amor e às boas obras. Reforça tua oração, segundo as oportunidades que tiveres, falando-me, em amor, tudo quanto julgares ser para a saúde de minha alma. Aviva-me na obra que Deus me deu a fazer e instrui-me na maneira de mais perfeitamente a cumprir. Sim, “admoesta-me como amigo e repreende-me”, em tudo quanto te parecer esteja eu fazendo antes minha própria vontade do que a vontade daquele que me enviou. Oh! Fala e não te cales, tudo quanto acreditares possa conduzir, quer à emenda de minhas faltas, ao revigoramento de minha fraqueza, à minha edificação em amor, quer a tornar-me mais idôneo, em todo sentido, para o uso do Mestre.

7. Quero dizer, finalmente, que me ames – não de palavras somente, mas de fato e de verdade. Na medida que em consciência possas fazê-lo (sustentando ainda tuas próprias opiniões e tua própria maneira de prestar culto a Deus), une-te comigo na obra de Deus – e sigamos de mãos dadas. E até este ponto, é certo, tu podes ir. Fala de modo honroso, onde quer que estejas, da obra de Deus, qualquer que seja a pessoa que a realize – e fala dignamente de seus  mensageiros. E, se estiver em tuas mãos, não somente, simpatiza com eles quando se encontrem em qualquer dificuldade, mas presta-lhes assistência carinhosa e eficiente, para que possam glorificar a Deus por tua causa.

8. Duas coisas devem ser observadas no tocante ao que foi dito sob a última epígrafe: uma é que, qualquer que seja o amor, qualquer que seja a obra de amor, qualquer que seja a assistência espiritual ou temporal, que peço àquele cujo coração é reto, assim como o meu o é para com o seu, o mesmo devo estar pronto, pela graça de Deus, a conceder-lhe, segundo os meios de que eu disponha; a outra é que não faça eu semelhante pedido somente, para meu proveito próprio, mas para o bem de todos aqueles cujo coração seja reto diante de Deus e dos homens, para que todos nos amemos uns aos outros como Cristo nos amou.

III

1. Uma inferência podemos fazer do que foi dito. Daí podemos aprender o que seja o espírito católico.

Dificilmente se encontra uma expressão que tenha sido mais grosseiramente deturpada e mais perigosamente empregada do que essa: mas será fácil a quem calmamente considerar as observações precedentes corrigir qualquer deturpação dessa idéia e evitar-lhe a aplicação ruinosa.

Porque, daí aprendemos, primeiro, que o espírito católico não é latitudinarisímo especulativo. Não é indiferença em face de todas as opiniões: isto é a sementeira do inferno e não a colheita do céu. Essa inconstância de pensamento, esse ser “levado de um para outro lado e ser um inimigo irreconciliável e não um amigo do verdadeiro catolicismo. O homem de espírito verdadeiramente católico não tem de estar à procura de sua religião. Está fixo como o sol em seu conceito acerca dos aspectos principais da doutrina cristã. Na verdade, está sempre pronto a ouvir e pesar tudo quanto se possa apresentar contra seus princípios; mas, como isto não revela nenhuma variação em sua própria mente, assim lhe não fornece nenhuma ocasião para variar. Não hesita entre duas opiniões, nem tenta vãmente fundi-las numa só. Observai isto, vós que não sabeis de que espírito sois; que vos chamais homens de espírito católico, simplesmente porque sois de compreensão opaca; porque vossa mente está toda em flutuação; porque não tendes princípios estabelecidos, consistentes, mas estais a misturar confusamente todas as opiniões. Convencei-vos de que errastes inteiramente o caminho; convencei-vos de que não sabeis onde vos encontrais. Pensais estar rumando para o próprio espírito de Cristo, quando, na verdade, mais perto estais do espírito do anticristo. Ide e aprende! os primeiros rudimentos do Evangelho de Cristo – e então aprendereis a ser de espírito verdadeiramente católico.

2. Do que se disse aprendemos, em segundo lugar, que o espírito católico não é uma espécie de latitudinarismo prático. Não é indiferença para com o culto público, ou para com as formas exteriores de o cumprir. Isto, do mesmo modo, não seria uma bênção, mas a maldição. Longe de haver nisto um auxílio, seria, enquanto perdurasse tal atitude, um inqualificável tropeço ao culto tributado a Deus em espírito e verdade. Mas o homem de espírito verdadeiramente católico, tendo pesado todas as coisas na balança do santuário, não tem dúvida, nem nenhum escrúpulo, no tocante à forma particular de culto a que adere. Está lucidamente convencido de que essa maneira de render culto a Deus tanto é espiritual como racional. Nada conhece no mundo que seja mais bíblico, nem que seja mais racional. Assim, sem estar claudicando. de um para outro lado, apega-se firmemente a ela e roga a Deus lhe abra oportunidades de assim o fazer.

3. Daí podemos aprender, em terceiro lugar, que o espírito católico não é indiferença em face de todas as congregações. Este é outro gênero de latitudinarisímo não menos absurdo e antibíblico do que o primeiro. Mas longe está ele do homem de espírito verdadeiramente católico. Tal homem está preso à sua congregação como a seus princípios. Está unido a ela, não somente em espírito, mas por todos os laços exteriores da fraternidade cristã. Ali ele participa de todas as ordenanças de Deus. Ali recebe a ceia do Senhor. Ali derrama sua alma em oração pública e une-se aos demais em público louvor e ações de graças. Ali se alegra em ouvir a Palavra de reconciliação, o Evangelho da graça de Deus. Com eles, com seus mais próximos, seus mais amado,, irmãos, busca a Deus, nas ocasiões solenes, através do jejum. A esses irmãos particularmente acompanha em amor, assim como eles velam sobre sua alma, admoestando, exortando, confortando,  reprovando e por todos os modos edificando uns aos outros na fé. A esses irmãos ele encara como sua própria família: e por isso, segundo a capacidade que Deus lhe deu, naturalmente cuida deles e providencia para que possam ter todas as coisas necessárias à vida e à piedade.

4. Mas, conquanto esteja firmemente preso a seus princípios religiosos, nos quais acredita estar a verdade como se acha em Jesus; conquanto firmemente se apegue àquela forma de cultuar a Deus que julga ser mais aceitável à sua vista; e conquanto esteja unido pelos laços mais temos e mais estreitos a uma congregação particular, seu coração se abre para toda a humanidade, para os que ele conhece e para os que não conhece; abraça com afeição forte e cordial a conterrâneos e a estranhos, a amigos e inimigos. Este é o amor católico ou universal. O que o possui é dotado de espírito católico. Porque só o amor distingue este caráter: o amor católico é o espírito católico.

5. Se tomarmos, portanto, esta palavra no sentido mais restrito, o homem de espírito católico é o que, do modo acima exposto, dá sua mão a todos aqueles cujo coração seja reto com seu coração: é o que sabe como louvar a Deus por todas as vantagens de que desfruta, apreciando-as devidamente em relação ao conhecimento das coisas de Deus, à verdadeira forma bíblica de lhe dar culto e, acima de tudo, em relação à sua união com uma comunidade que teme a Deus e pratica a justiça: é o que, retendo essas bênçãos com o mais rigoroso cuidado, guarda-as como a menina dos olhos e, ao mesmo tempo, ama – como amigos, como irmãos no Senhor, como membros de Cristo e filhos de Deus, como atuais co-participantes do presente reino de D eus e co-herdeiros de seu reino eterno – a todos, de qualquer opinião, ou culto, ou congregação, que creiam no Senhor Jesus Cristo; que amem a Deus e aos homens; e que, regozijando se em louvar a Deus e temendo causar-lhe ofensa, sejam cuidadosos no abster-se do mal e zelosos nas boas obras. É homem de espírito verdadeiramente católico aquele que continuamente traz essas coisas em seu coração; que, tendo uma indizível ternura para com sua pessoa, e almejando seu bem-estar, não cessa de os encomendar a Deus em oração, bem como de lhes defender a causa diante dos homens; que lhes fala com agrado e trabalha, através de todas as suas palavras, por lhes fortalecer as mãos em Deus. Auxilia-os em todas as coisas, até o extremo limite de seus recursos, seja no terreno espiritual, seja no terreno temporal. Está pronto a “consumir e ser consumido por eles”; sim, e até a dar a sua própria vida por sua causa.

6. Tu, ó homem de Deus, pensa nestas coisas! Se já estás neste caminho, prossegue. Se dantes havias-te desviado dele, bendize a Deus, que te reconduziu! E agora, corre a carreira que te está proposta, ao longo da estrada real do amor universal. Toma cuidado, para que não varies em tuas convicções ou te enfraqueças em teu coração: mas persevera na paz, enraizado na fé uma vez entregue aos santos, e fundado no amor, no verdadeiro amor católico, até que sejas arrebatado em amor pelos séculos dos séculos!

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