Definição do Termo
[…] toda essa questão do que se quer dizer com o próprio termo “puritano” é complicada e vem recebendo muita atenção recentemente. Há um ensaio muito fascinante sobre este assunto, com o título de Puritanismo: O Problema da Definição (“Puritanism: the Problem of Definition”), de autoria do professor Basil Hall, de Cambridge, que se acha na obra Estudos da História da Igreja (“Studies in Church History”), Vol. II, editada por G.J. Cunning.
Desde o princípio tem havido grande confusão concernente a esta questão do sentido exato do termo puritano. Houve muitos fatores que levaram a isso. A história dos Puritanos (“History of the Puritans”), de Daniel Neal, é um dos fatores. Ele foi um pouco descuidado no uso do termo, e outros se inclinaram a segui-lo. Além disso, como o professor Basil Hall assinala com muito acerto, os líderes das igrejas congregacionais e batistas, orgulhando-se do fato de que as suas igrejas chegaram à respeitabilidade no presente século, mostram-se muito desejosos de pôr em cena as suas origens separatistas. Isso não é surpreendente; de fato é inevitável, como se vê no caso de indivíduos que “subiram no mundo”. Esses fatores, juntos, conspiraram para produzir muita confusão em toda esta questão de definição do termo puritano. Os dois volumes da obra de Champlin Burrage, lançados em 1912, sobre Os Primitivos Dissidentes Ingleses (“The Early English Dissenters”), creio que, mais do que qualquer coisa que já passou pelas minhas mãos, trouxeram benefício no sentido de aclarar essa confusão e, daí em diante, a situação melhorou um pouco. Mas, mesmo agora, não está muito clara. O termo puritano tem sido empregado com muita imprecisão e, como o professor Hall diz ainda, o seu significado tem sido grandemente inflacionado.
Portanto, que espécie de definição é possível? Bem, a primeira coisa que devemos lembrar é que o termo é utilizado corretamente, e o foi por algum tempo, de um modo muito solto, incluindo indivíduos que não somente divergem radicalmente uns dos outros sobre esta questão da Igreja, porém até mesmo divergem de maneira amarga. Todos eles têm sido amontoados juntos, sempre como puritanos. Aí é que entra a dificuldade. Num sentido, naturalmente, eles mantinham certas coisas em comum, mas neste ponto estavam definidamente dividido e em desacordo.
Vou sugerir um tipo tosco de definição. Aproximadamente até 1570 os puritanos eram pessoas que podem ser descritas como membros da Igreja da Inglaterra incessantemente críticos e ocasionalmente rebeldes, e que desejavam alguma modificação no governo da Igreja e no culto. Vocês podem pensar em exemplos e ilustrações disso. Eram membros da Igreja da Inglaterra. Seu único interesse era que a Reforma fosse além. Achavam que a Igreja da Inglaterra tinha parado a meio caminho entre Roma e Genebra, e desejavam que a Reforma fosse realizada mais completamente nas questões de cerimônias, disciplina e coisas semelhantes. Essa foi a situação até mais ou menos a época em que Thomas Cartwright e outros começaram a pôr em relevo o conceito presbiteriano de governo da Igreja.
E muito importante lembrar que Cartwright, como aqueles outros anglicanos aos quais me referi, não era um separatista. Ele acreditava, e os presbiterianos acreditavam com ele, que eles poderiam reformar a Igreja da Inglaterra em termos presbiterianos, e que poderiam transformá-la numa Igreja Presbiteriana. Por essa razão não eram separatistas. Mas pouco depois vieram a existir os chamados separatistas. De fato, a primeira igreja separatista deste país foi provavelmente uma igreja formada aqui em Londres em 1567 por um homem chamado Richard Fitz; entretanto ela teve uma história muito curta e variegada. É quando se chega a gente como Robert Browne e Robert Harrison, na década de 1580, que os separatistas vêm uma boa e clara definição.
Eram pessoas que acreditavam que o princípio de que os contornos da Igreja de Cristo devem coincidir com os do Estado dos Stuart e dos Tudor era errado; assim, acreditavam em separar-se da Igreja estatal, que tinha aquele conceito. O fato de que Browne subseqüentemente retratou e teve longa vida como ministro da Igreja da Inglaterra, realmente não faz nenhuma diferença quanto à questão de princípio.
Depois de Browne e Harrison, houve três homens ainda mais notáveis, parece-me, como separatistas. Eram Henry Barrowe, John Greenwood e John Penry, cada um do quais levado à morte por causa dos seus princípios, em 1593. Pois bem, esses homens criam na completa separação da Igreja estatal. A diferença entre os dois grupos às vezes era expressa deste modo, que o primeiro grupo acreditava em Aguardar o Magistrado (“Tarrying for the Magistrate”) e o segundo grupo dizia, Reforma sem Aguardar Ninguém (“Reformation Without Tarrying For Any”) — título de um livro de Browne.
Era essa, pois, a situação até a virada do século 16 para o século 17. Depois disso tornou-se realmente difícil. A dificuldade foi que toda gente parece ter pressuposto que os independentes eram a continuação direta dos brownistas ou dos barrowistas ou dos greenwoodistas, como quer que se lhes queiram chamar. Mas desejo tentar mostrar que não foi esse o caso. Neste ponto devemos ser muito prudentes. Surgiram certos homens, e Henry Jacob, a respeito de quem vou falar, era um dos mais importantes deles, os quais foram realmente responsáveis pelo princípio da verdadeira independência ou congregacionalismo.
Então, qual era a diferença entre a posição de Jacob e a dos seus seguidores, às vezes chamados “Jacob-itas” — não jacobistas — e os separatistas, como os brownistas ou os barrowistas ou mesmo os anabatistas? Bem, pode-se expressá-las deste modo: os independentes não consideraram a Igreja na Inglaterra como sendo totalmente errada, não se opunham ao comparecimento ocasional aos cultos da Igreja da Inglaterra e, na verdade, não se opunham realmente à idéia de uma Igreja do Estado como tal. Oliver Cromwell, por exemplo, era um verdadeiro independente, porém ele deu continuidade ao sistema do dízimo quando chegou ao poder e à autoridade, e o seu governo teve parte ativa na organização da vida religiosa deste país.
Podemos, pois, ver a coisa algo assim, que até cerca de 1640 tínhamos aquele tipo original de puritano que era essencialmente anglicano e que, naturalmente, não era separatista; depois tínhamos o tipo presbiteriano de puritano, também não separatista; depois, exatamente no outro extremo, tínhamos os separatistas muito francos, claros e abertos. Mas então veio à existência este novo grupo, parece-me, por volta de 1605, muito definidamente como resultado do entendimento deste homem, Henry Jacob.
É muito interessante notar a relação entre Jacob e John Robinson, conhecimento como “o pastor dos Pais Peregrinos”. John Robinson foi primeiro um separatista, no entanto tornou-se um independente, e foi aí que Neal e outros perderam o rumo. Convenceu-me plenamente o argumento de Champlin Burrage quanto a essa questão. Era idéia antiga que foi John Robinson que fez de Henry Jacob um independente; porém de fato foi o contrário. Foi Henry Jacob que fez de John Robinson, que era um separatista, um independente. Isso, penso eu, é uma coisa que Champlin Burrage prova claramente, com citações de obras de Robinson anteriores a 1610, quando ele conheceu Jacob, e com citações de obras que ele escreveu depois e, realmente, com o modo como ele se portou posteriormente.
Essa matéria é de algum interesse para nós hoje na medida em que mostra que esses homens mantiveram suas mentes abertas, que não foram rígidos e fixos, mas sempre estavam prontos a ouvir uma nova declaração, um novo argumento ou recentes demonstrações hauridas das Escrituras. Isso é uma coisa que nos inclinamos a esquecer sobre eles. Havia alguns, é certo, que eram totalmente rígidos e fixos e que não se dispunham a mudar fossem quais fossem as condições; todavia, falando em geral deles, penso que a verdade é que eles estavam prontos a considerar outros pontos de vista.
De 1640 em diante, porém, a situação parece ter se tornado completamente diversa. Daquele tempo para cá os termos são empregados com regularidade. Em vez de um termo conglomerado como puritano, entraram em uso os termos presbiteriano, independente, batista e anabatista. Naturalmente havia outros nome,s como os quacres, os homens da quinta monarquia, os escavadores (“the Diggers”) e outros. Mas o ponto interessante é que termos como independente, batista e presbiteriano, em vez de puritano, foram mais usados, e mais freqüentemente, de 1640 em diante. Não devemos ser pedantes nessas coisas, porém, se é para entendermos a essência da história deste homem, Henry Jacob, era indispensável dizer o que eu já disse.
Em confirmação disso, tenho uma declaração, uma citação do famoso Robert Baillie, que tanto escreveu sobre a Assembléia de Westminster de 1643-1647 e que foi um dos membros escoceses daquela assembléia. Diz Robert Baillie: “quanto aos brownistas, seu número em Londres ou em Amsterdã é muito pequeno”. “Os puritanos independentes de Londres”, ele igualmente relata, “até agora consistem de, no máximo, mil pessoas; homens, mulheres, e todos quantos até hoje se puseram nalguma igreja conhecida daquela maneira, foram contados”. Segue-se depois um testemunho espontâneo: “Mas, pondo de lado os números, noutros aspectos a condição deles é tão eminente que nenhuma das outras seitas, nem todas elas juntas, são comparáveis a eles”. Ele está falando aqui em particular dos independentes. Vocês vêem que eles eram um número muito pequeno em 1645, menos de mil, acha ele, aqui em Londres.
Aí está, pois, uma tentativa de definição. Espero que esteja bem claro que os independentes não acreditavam num total rompimento com a Igreja da Inglaterra. Eles estavam dispostos a conceder que a Igreja da Inglaterra era uma Igreja verdadeira; em todo caso, que existiam igrejas verdadeiras dentro da Igreja da Inglaterra, e cristãos verdadeiros; e não se separaram inteiramente. Eles acreditavam numa “conformidade ocasional” e, em certas ocasiões, como vou mostrar-lhes mais tarde com citações, juntavam-se aos episcopais nos cultos. Com razão têm sido chamados semi-separatistas.
Procurei descrever a situação de maneira ampla e geral. O que temos necessidade de captar é que houve uma grande confusão durante todos esses anos. Se alguma vez a posição foi fluida e incerta, foi nesse tempo.
Fonte: Os Puritanos: Suas Origens e Seus Sucessores, D. M. Lloyd-Jones. Páginas 160-164.