Os Anabatistas

Nota do tradutor:

Os anabatistas são, na realidade a continuação de um movimento que preservou a fé ao longo da história, desde os tempos de Paulo, o apóstolo, nos vales do Piedmont. Conseguimos localizar os Irmãos ainda no ano 900, mas a documentação maior está disponível a partir de 1160 com a conversão de Pedro Waldo. Foi então que os Irmãos receberam o nome de waldenses, mas eram antes conhecidos apenas como Irmãos. Depois esses Irmãos foram recebendo outros apelidos ao longo da história como wiclifistas, hussitas, anabatistas, menonitas, moravianos, mas eram sempre os mesmos Irmãos do início do século. Vale a pena ler a história deles.

Lá pelo ano de 1524, na Alemanha, muitas das igrejas dos irmãos, como as que existiam desde tempos remotos em várias partes do mundo repetiram o que acontecera em Lhota em 1467: declararam sua independência como congregações de crentes e determinaram várias regras que as novas igrejas deveriam obedecer  para serem fundamentadas no ensinamento das escrituras. Como acontecera em Lhota, os membros que ainda não haviam sido batizados, foram imersos nas águas e batizados. * Daí esse grupo recebeu um novo nome, nome que eles mesmos repudiavam, porque era um epíteto que os identificava como uma nova seita, um nome ofensivo: O novo nome, anabatistas (batizados outra vez).

Ao longo dos anos os comunistas e subversivos da ordem e da moralidade da época foram chamados também de anabatistas, exatamente para ferir os Irmãos. Mas os Irmãos não tinham ligação alguma com os que subvertiam a ordem. Todos os que perseguiam os Irmãos sabiam que eles eram justos e retos e que nada tinham a ver com a desordem social. Assim como nos tempos remotos a literatura dos cristãos tinha sido destruída, e sua história escrita por seus inimigos, assim aconteceu no século XVI. Tendo em vista a violência do linguajar, coisa comum naqueles tempos de controvérsia religiosa, é necessário pesquisar tudo o que restou do que escreveram esses Irmãos.

Num relatório feito pelo Concílio do Arcebispo de Colônia sobre o movimento anabatista e enviado ao Imperador Carlos V é mencionado que os anabatistas se dizem ser os “verdadeiros cristãos”, que desejam compartilhar seus bens “o que tem sido feito pelos anabatistas por mais de mil anos, como testificam as leis imperiais e a própria história”. Quando o parlamento de Speyer foi dissolvido foi dito que “a nova seita dos anabatistas” havia sido condenada centenas de anos atrás e “proibido pelas leis comuns”. O fato é que por mais de doze séculos (1200 anos) o batismo como é ensinado e descrito no Novo Testamento era condenado como uma ofensa às leis e punido com a pena de morte.

O período da Renascença fez que muitos irmãos que viviam escondidos por causa da perseguição ressurgissem em várias localidades. Um edito eclesiástico publicado em Lyon contra um dos irmãos dizia: “Das cinzas de Pedro Waldo muitos ressurgem e faz-se necessário a imposição de punições duras e severas que sirvam de exemplo aos demais”. Muitos dos crentes ressurgiram nos vales suíços, e tratavam uns aos outros como irmãos e irmãs, e descobriram que o que estava acontecendo não era novidade, e tinham certeza de que perpetuavam o testemunho dos que durante séculos foram perseguidos como “heréticos” como mostram os registros dos martírios.

Na Suíça os cristãos perseguidos costumavam se refugiar nas montanhas, enquanto na Alemanha refugiavam-se sob as leis do Trade Guilds. A Reforma fez que muitos irmãos que viviam escondidos passassem a fazer parte das igrejas existentes. Os irmãos formavam também novas igrejas cujo rápido crescimento chamou a atenção da igreja estatal, tanto a Católica Romana como a Luterana. Um observador simpatizante, não um dos irmãos, escreveu que em 1526 um novo partido surgiu, espalhando-se tão rapidamente que sua doutrina logo permeou todo o país atraindo seguidores; muitos que tinham o coração sincero e temiam a Deus juntaram-se aos irmãos. Ensinavam apenas sobre o amor, a fé, sobre a cruz, e eram pacientes e humildes diante do sofrimento alheio; partiam o pão nas casas uns dos outros como demonstração de unidade e de amor, e ajudavam-se mutuamente. Agruparam-se e cresceram tão rapidamente que o mundo temeu que eles fossem provocar uma revolução, no entanto nunca se provou nada contra eles neste sentido, e este pensamento vil jamais lhes penetrou a alma, ainda que em alguns lugares eram tratados de maneira tirânica.

Esses irmãos eram cuidadosos no estudo da Palavra de Deus como guia de suas vidas e não se submetiam ao domínio de homens, no entanto reconheciam a necessidade de escolher anciãos ou presbíteros para supervisionar as igrejas, indicando pessoas que se caracterizavam pelos dons do Espírito Santo para que fossem seus guias. Um desses proeminentes guias na época foi o Dr. Balthazar Hubmeyer. * Depois de ter uma brilhante carreira como professor de Teologia na Universidade de Freiburg, ele foi indicado (1516) para ser o pregador da catedral de Regensburg, atraindo muita gente com suas pregações. Três anos depois mudou-se para Waldshut, e lá experimentou uma profunda mudança, aceitando os ensinamentos de Lutero, sendo acusado de se deixar influenciar pela heresia dos boêmios (John Huss), isto é, os ensinamentos dos irmãos da Boêmia. No dia 11 de Janeiro de 1524 ele convidou os Irmãos para se reunirem em sua casa trazendo suas Bíblias. Ele explicou que o motivo da reunião era ajudar os irmãos a se familiarizarem com a Palavra de Deus para que pudessem alimentar o rebanho de Cristo, lembrando-os que desde os tempos apostólicos os que eram chamados para serem ministros da Palavra Divina se encontravam para, mutuamente buscar conselhos e tratar as questões pertinentes à fé. Algumas perguntas foram feitas pra que eles honestamente pudessem entender à luz das escrituras, prometendo-lhes que, no que fosse possível de sua parte, ele forneceria as refeições por sua própria conta.

Hubmeyer expressou-se assim: “A igreja de Cristo é universal em sua comunhão, e formam uma irmandade de muitos crentes piedosos que em comum acordo honram o Senhor, tendo um só Deus, uma só fé e um só batismo”. A igreja, disse ele, “é a assembléia de todos os crentes onde quer que estes estejam na terra…”. Ou: “Homens e mulheres separados do mundo que amam a Cristo”, e explicou: “Existem duas igrejas, uma cobrindo a outra, a igreja geral e a igreja local… a igreja local faz parte da igreja universal, que inclui todos os remidos…”.

Quanto à comunhão dos bens materiais, afirmou que cada irmão deve ajudar o outro em suas necessidades, pois nada do que temos nos pertence, foram-nos confiados como mordomos de Deus. Considerou que, quanto ao pecado o poder da espada foi entregue aos governos da terra, e que a eles temos de nos submeter no temor de Deus. Essas reuniões eram realizadas quase sempre em Basle onde Hubmeyer e seus amigos buscavam conhecer as Escrituras com zelo, e tratavam dessas questões práticas da época.

Basle tornou-se um centro de atividade espiritual. As gráficas não temiam editar livros tidos como heréticos, e imprimiam obras de Marcílio de Pádua e de John Wycliff que eram distribuídas para o mundo. Irmãos habilidosos e talentosos se reuniam com Hubmeyer para estudar a Bíblia. Comenta-se que um deles, Wilhelm Reublin expunha as escrituras de maneira excelente, sem paralelo naqueles dias. Por causa dele o número de fieis aumentou nas igrejas. Ele havia sido padre em Basle e, durante a celebração de Corpus Cristo levava a Bíblia no andor em vez de imagens… Ele foi batizado e mais tarde, enquanto vivia em Zurique foi expulso do país, mas continuou a pregar na Alemanha e na Moravia. Havia sempre Irmãos que vinham de fora, porque as igrejas de diferentes países continuavam a manter comunhão entre elas. Dentre esses se encontrava Richard Crocus da Inglaterra, homem culto que exerceu grande influência entre os estudantes, e muitos deles vinham da França e da Holanda para aprender com ele.

Em 1527 convocaram outra conferência de irmãos na Moravia e Hubmeyer se fez presente. Os irmãos se reuniram sob a guarda do Conde Leonhard e de Hans Von Lichtenstein. O conde foi batizado por Hubmeyer durante a conferência, e ele mesmo fora batizado dois anos antes por Reublin. Na mesma conferência 110 pessoas foram batizadas e outras 300 mais tarde pelo próprio Hubmeyer, entre esses a esposa de Hubmeyer, filha de um cidadão de Waldshut. No mesmo ano Hubmeyer e sua esposa fugiram do avanço do exército austríaco e perderam todos os seus bens. Foram para Zurique onde foi encontrado pelos seguidores de Zwinglio e lançado na prisão.

A cidade e Cantão, na Suíça viviam, nesta época sob a influência de Ulrich Zwinglio que começara a reforma protestante na Suíça bem antes de Lutero na Alemanha. A doutrina dos reformadores suíços que diferia, em alguns aspectos da ensinada por Lutero espalhara-se pelos muitos Cantões penetrando também em alguns estados da Alemanha.

O Concílio de Zurique promoveu uma disputa entre Hubmeyer e Zwinglio em que Hubmeyer, alquebrado pelas condições físicas difíceis que teve de suportar na prisão foi suplantado por seu oponente, mais robusto. Com medo de ser entregue nas mãos do imperador, chegou a se retratar de alguns de seus ensinamentos, mas imediatamente se arrependeu desta sua atitude de ter medo dos homens pedindo a Deus que o perdoasse e que o restaurasse.

Dali seguiu para Constância, depois foi para Augsburg onde batizou a Hans Denck. Em Nikolsburg na Moravia, Hubmeyer se lançou a escrever e publicou dezesseis livros. Durante sua curta permanência no distrito cerca de seis mil pessoas foram batizadas e o número de membros chegou a 15 mil. Os Irmãos não pensavam iguais em várias coisas, e quando o eloqüente pregador Hans Hut veio a Nikolsburg e ensinou que não era bíblico a um cristão portar armas em defesa da pátria, ou para defesa pessoal, ou ainda que não era bíblico que se pagasse impostos que seriam usados em guerras, Hubmeyer se lhe opôs severamente. Em 1527 o rei Ferdinando exigiu que as autoridades lhe entregassem a Hubmeyer e ele foi levado para Viena onde Hubmeyer foi torturado e executado. Sua esposa o animou a permanecer fiel, e alguns meses depois de chegar a Viena foi levado ao cadafalso na praça pública. Sua voz ecoou pela praça: “Ó meu Deus querido, dá-me paciência para sofrer o martírio! Ó Pai, agradeço-te porque hoje vais me tirar deste vale de tristezas. Ó Cordeiro, Cordeiro, que tiras o pecado do mundo! Ó meu Deus, em tuas mãos entrego meu espírito!”. De dentro das chamas ouviu-se seu clamor: “Jesus! Jesus!”. Três dias depois sua corajosa esposa foi lançada de uma ponte sobre o rio Danúbio com uma pedra amarrada ao pescoço e morreu afogada.

Um dos mais influentes irmãos que conduziu as igrejas nos agitados dias da Reforma foi Hans Denck. * Natural da Bavária, Hans estudou em Basle onde se formou e deve ter entrado em contato com Erasmo e o brilhante círculo de eruditos e editores que lá se reuniam. Encarregado de cuidar de uma das mais famosas escolas de Nurembergue pra lá se mudou em 1523, cidade em que o movimento luterano havia um ano se fortalecia sob a orientação do talentoso jovem Osiander. Denck, também um jovem de cerca de 25 anos de idade, esperava que o novo movimento trouxesse moralidade e justiça, mas descobriu que este era um defeito do ensinamento no movimento de Lutero, o qual, insistindo na doutrina da justificação pela fé, sem as obras e na abolição de muitas coisas ensinadas pela igreja católica, negligenciou a urgente necessidade de obediência, autonegação, e o discipulado a Cristo como coisas essenciais da fé. Percebendo essas coisas aos poucos Osiander (1551) mostrou que o ensinamento de Wittenberg apenas deixou as pessoas “seguras e descuidadas” “A maior parte delas”, escreveu, “não gosta do ensinamento que requer moral e que põe em cheque os desejos naturais. No entanto, querem ser chamadas de cristãos, e dão ouvidos aos hipócritas que propagam que nossa justiça se baseia apenas na justiça de Deus, e, mesmo sendo maus, afirmam, nossa justiça não está em nós, mas fora de nós. Assim, conforme este ensinamento, tais pessoas podem ser consideradas santas.”

“Ai dos que pregam que a pessoa pecadora não pode ser considerada piedosa; muitos ficam furiosos quando ouvem isto, como vimos e experimentamos; e gostaríamos que tais pregadores fossem expulsos ou mortos, mas, não sendo possível, o povo fortalece esses pregadores hipócritas elogiando-os, dando-lhes presentes e proteção, para que vivam felizes sem ter de dar ouvidos à verdade, e assim, os falsos santos e os falsos pregadores são iguais, assim como o povo, assim seus sacerdotes”.

Denck foi denunciado aos juízes da cidade por Osiander. Os juízes convocaram Denck a comparecer diante deles e diante dos oponentes luteranos. Na disputa que se seguiu, Denck conforme o testemunho de um opositor, “mostrou-se tão capaz que ninguém podia discutir com ele”. Pediram-lhe que escrevesse sua defesa em sete pontos previamente arranjados. Denck apresentou sua defesa, para a qual Osiander não teve argumento. O caso foi levado ao conselho da cidade. E foi assim que em 1525 solicitaram a Denck que se afastasse 16 quilômetros da cidade, do contrário seria preso. Na manhã seguinte Denck se despediu e viveu errante pelo resto de sua vida.

Em sua “confissão” Denck reconheceu sua triste natureza, mas reconhecia que dentro dele havia uma força que lutava contra o pecado anelando por bênçãos espirituais. Disseram-lhe que essas coisas se obtinha pela fé, e que a fé deveria ser algo mais do que mera aceitação do que se lia ou ouvia. A resistência natural à leitura da Bíblia era superada pela voz da consciência que o impelia a agir daquela maneira, e descobriu que o Cristo revelado nas Escrituras correspondia ao que havia sido revelado em seu coração. Descobriu que não podia entender as Escrituras apenas fazendo uma leitura de texto, e que somente o Espírito Santo é que a revelava ao seu coração e à sua consciência.

O documento preparado pelos ministros luteranos que lançavam a Denck no exílio afirmava que ele “confirmava” aquilo e que “suas palavras foram escritas de tal maneira e com tal entendimento cristão que seus pensamentos e o sentido do que dizia confirmava tudo” e que a unidade da igreja luterana exigia deles que assim procedessem. Sempre que retornava, Denck notava que as calúnias o precediam e que todo tipo de erros doutrinários eram-lhe atribuídos, o que levava as pessoas a evitarem-no como um homem perigoso. Ele nunca permitia que seus adversários fossem tratados como ele era tratado. Conforme o costume da época diziam o que queriam sobre Denck, mas em nenhum de seus escritos ele falava mal de seus adversários. Ao ser provocado, certa ocasião, respondeu: “Tanta coisa ruim vem sendo dita a meu respeito, mas ninguém averigua a humildade de meu coração.” E ainda: “Entristece meu coração de que eu tenha que viver em desunião com pessoas que não posso chamar de irmãos… Portanto, enquanto Deus me der forças não farei de meu irmão um adversário, nem de meu Pai um juiz, mas quero ser reconciliado com todos os meus adversários”.

Depois de viver durante certo tempo no lar hospitaleiro de um irmão em St. Gallen, Denck precisou partir, pois seu hospedeiro entrou em conflito com as autoridades locais. Encontrou, então refúgio em Augsburg, por influência de seus amigos. Em Augsburg não havia apenas uma acirrada luta entre luteranos e zwinglianos e entre esses e os católicos, mas grande depravação moral que afetava todo o povo. Ele passou a ter compaixão daquelas almas e começou a reunir os cidadãos que queriam se encontrar como irmãos na igreja confessando sua fé na obra expiatória de Cristo e comprometendo-se em seguir a Jesus por toda a vida. Por esse tempo não havia se associado aos crentes que eram chamados pejorativamente de anabatistas ou batistas, mas fazia em Augsburg o que estes faziam por toda parte, e o que ele havia visto em St. Gallen.

A visita que fizera anteriormente ao Dr. Hubmeyer levou-o a decidir que deveria fazer parte dos irmãos e a ser batizado. Antes da chegada de Denck havia muitos irmãos batizados em Augsburg e a igreja rapidamente aumentou. Eram igrejas compostas de gente pobre, mas havia entre eles pessoas de posse e de posição social. Os escritos de Eitelhans Langenmantel atraía muita gente. Este era filho de um proeminente cidadão de Augsburg, catorze vezes prefeito da cidade e que ocupara cargos importantes no Estado. Em 1527 o numero de membros havia aumentado para 1.100 pessoas, e as atividades desses irmãos permitiram que fossem fundadas novas igrejas; as igrejas existentes foram fortalecidas em todos os lugares.

Um escritor que tinha ótima fonte de informações diz: “Leva-se a crer que muitas pessoas enfermadas pela recriminação e acusações de heresias dos púlpitos, preferiam se refugiar e serem edificadas à parte de todo sectarismo… Tal ideal fazia parte dos anabatistas. Eles olhavam o passado quando no tempo glorioso dos primeiros apóstolos, de cidade em cidade começavam as primeiras igrejas cristãs, onde todos se reuniam num espírito de amor, como membros de um mesmo corpo.” *

Muitos cânticos foram escritos neste tempo; cânticos que expressavam e relatavam a maneira dos irmãos adorarem.

Quando as perseguições se intensificaram contra Denck ele partiu de Augsburg e se refugiou em Strassburgo onde havia uma grande assembléia de irmãos batizados. Os líderes do partido protestante eram dois homens habilidosos, Capito e Bucer, que não se alinhavam diretamente com Wittemberg nem com Zurique, se bem que o relacionamento destes com Zwinglio e com os reformadores suíços era mais íntimo. Capito achava que poderia permanecer em amizade com ambas as partes e ser um elo de alegria entre os dois. Não havia se posicionado na questão do batismo, mas mantinha certa amizade com muitos dos Irmãos. A presença de homens extremados entre os irmãos, dos quais não podiam se livrar, prejudicou sua influência impedindo que outras pessoas se unissem aos irmãos. Quando Zwinglio apresentou a proposta de punição de morte aos que divergiam dele, tal decisão enfraqueceu sua influência sobre Capito. Com a chegada de Denck, as condições eram tal e o número de irmãos tão grande e tão influentes que até parecia que dominavam a cena religiosa em toda cidade. Logo fez amizade com Capito que com sua piedade, habilidade e charme pessoal atraiu tanta gente pra ele, como líder confiável, não apenas os irmãos tidos como batistas, mas muitos indecisos que não sabiam que partido tomar.

Bucer ficou alarmado com o que viu, e julgando que não havia qualquer futuro para qualquer partido que não agüentaria o poder civil, ele, juntamente com Zwinglio trabalharam com tanto sucesso fazendo a cabeça do conselho da cidade que, alguns dias depois de entrar na cidade Denck foi novamente expulso. Os que o apoiavam eram tantos que ele poderia ter resistido e não ser exilado, mas ele, seguindo os princípios nos quais se firmava, de submissão às autoridades deixou a cidade em 1526.

Denck corria perigo de vida em todas as cidades. Em Worms, onde havia uma grande congregação, ele permaneceu o tempo suficiente para traduzir os profetas. Juntamente com Ludwig Hetzer imprimiram os livros em 1527. Em três anos treze edições desta tradução foram impressas. A primeira edição foi impressa cinco vezes, e no ano seguinte mais seis edições. A edição de Augsburg foi reimpressa cinco vezes em nove meses. Logo após, Denck liderou uma conferência dos irmãos de muitos distritos em Augsburg. Ali ele se opôs aos que queriam fazer uso da força para lutar contra a perseguição. Esta reunião ficou conhecida como “a conferência dos mártires”, pois muitos que participaram dela foram mais tarde condenados à morte. Alcançando Basle, com a saúde física alquebrada pela vida de andarilho e pelas privações, ele fez contato com seu amigo de tempos atrás, o reformador Hausschein chamado Ecolampadius, que ao vê-lo em tal condição proveu um lugar agradável e seguro onde ele pudesse morrer em paz.

Antes de morrer, escreveu: “É duro e doloroso viver sem lar, mas pior ainda é saber que meu zelo deixou tão pouco fruto e resultado. Deus sabe que não anelei outra coisa na vida a não ser frutificar. De boa mente deveria glorificar o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, quer sejam as pessoas circuncidadas, batizadas ou nenhuma das duas coisas.” Quando havia tolerância religiosa escreveu: “Nas questões de fé todos devem ser livres para expressar suas convicções”.

As disputas doutrinárias nem sempre se baseiam na verdade de uns e nos erros de outros. As dissensões costumam ocorrer porque um dos lados enfatiza demasiadamente um aspecto da verdade, enquanto o outro se agarra num aspecto diferente da mesma verdade. Cada lado sustenta o ponto de vista que lhe é favorável e minimiza ou ignora o que a outra parte considera relevante. Daí que qualquer coisa pode ser provada pelas escrituras que, sob este ponto de vista não é um guia fiel. Tal característica da Escritura, ao contrário, mostra sua completude. Não mostra apenas um lado, mas apresenta a cada momento cada fase da verdade. Assim, a doutrina da justificação pela fé somente, sem as obras que é amplamente ensinada só é equilibrada quando se ensina a necessidade das boas obras, pois estas mostram a conseqüência e são as provas da fé. Ensina-se que o homem caído é incapaz de operar boas obras, que por elas não consegue alcançar a Deus, e que a salvação tem sua origem na graça e favor de Deus para o ser humano, e se esquece que o homem é imbuído desta capacidade de buscar a salvação, e tem uma consciência que reage à divina luz da palavra, que condena o pecado e aprova a justiça. De fato, cada grande doutrina revelada nas Escrituras apresenta-se de forma equilibrada, e ambas são necessárias para o conhecimento de toda verdade. Neste sentido a palavra de Deus demonstra a obra de Deus na criação, na qual as forças opositoras cooperam juntamente para o fim necessário.

Ensina-se freqüentemente que a Reforma foi estabelecida dividindo a Europa entre Protestantes (luteranos ou zwinglianos) de um lado e a igreja romana de outro. Existe um grande número de cristãos que não pertencia a nenhuma das partes, e que se reuniam como igrejas independentes, sem depender, como os luteranos e os católicos do poder civil, mas que se empenhavam em levar a termo os princípios divinos estabelecidos no Novo Testamento. Era tão numeroso o número de cristãos independentes que as duas igrejas apoiadas pelo Estado (Luteranos e Católicos Romanos) sentiam-se ameaçadas. A razão de porque a presença desta terceira via ocupa tão-pequeno espaço na história daqueles dias se deve ao poder do Estado, das grandes igrejas católicas e protestantes que se empenharam em destruir as igrejas independentes. As igrejas que restaram da perseguição imposta pelas duas igrejas foram se enfraquecendo ao longo dos anos. O lado vitorioso se encarregou de destruir a literatura dos Irmãos, e ao escrever a história colocavam-nos como heréticos e repudiados dando-lhes apelidos que demonstravam todo o ódio que esses dois grupos tinham por eles.

Em 1527 sob a orientação de Michael Sattler e de outros líderes realizou-se uma conferência em Baden onde houve acordo nos seguintes pontos: (1) Que somente os convertidos deveriam ser batizados; (2) que as igrejas deveriam exercer disciplina; (3) que a ceia do Senhor deveria ser em memória da morte do Senhor; (4) que os membros da igreja não deveriam ter comunhão com o mundo; (5) que era dever dos pastores da igreja ensinar e exortar, etc. (6) que os cristãos não deveriam portar espada nem recorrer ao judiciário; (7) que os cristãos não deveriam jurar. Sattler pregava ativamente a palavra em vários distritos e na primavera de 1527 visitou Estrasburgo e Württemberg. Em Rottenburgo ele foi preso e condenado à morte por seus ensinamentos. Conforme a decisão da corte ele deveria sofrer mutilações físicas em vários lugares da cidade, depois levado aos portões, e o que restasse dele deveria ser lançado na fogueira (N.T. mutilado pelos protestantes).

Sua esposa e várias mulheres da igreja foram afogadas e grande número de irmãos que as acompanhavam foram jogados na prisão e decapitados. Estas foram as primeiras e terríveis mortes em Rottenburgo. Os irmãos que se reuniam aos milhares em Augsburg foram espalhados e perseguidos até a morte. O primeiro a ser morto foi Hans Leupold, ancião da igreja, que foi preso num dos cultos com outros 87 irmãos e decapitados em 1528. Na prisão, aguardando a morte escreveu um cântico que foi anexado ao hinário dos Irmãos. A maioria dos cânticos desses batistas foi escrita na prisão, e demonstram a profunda experiência de sofrimento e do amor do Senhor em suas vidas. Os cânticos tornaram-se conhecidos dos demais santos trazendo consolo e coragem diante das perseguições. Duas semanas depois o talentoso Eithelhans Langenmantel, apesar de ser amigo das famílias mais influentes foi executado juntamente com outros irmãos. Um grande número deles foi expulso da cidade, geralmente com uma cruz marcada em suas testas. Em Worms o numero de irmãos era tão grande que foi difícil dispersá-los, pois continuaram a se reunir em secreto.

Landgraf Philip de Hessen era exceção à regra aos governantes daqueles dias. Ele, corajosamente enfrentou as conseqüências por recusar assinar e obedecer as ordens do imperador Carlos V, decretado em Speyer, que ordenava a todos os governos e oficiais do império, “que todos os que se batizavam de novo, homens ou mulheres, de qualquer idade, fossem julgados e mortos na fogueira e pela espada, ou conforme a circunstância pessoal, sem julgamento prévio do juiz espiritual”. E que todos os que recusavam trazer seus filhinhos para serem batizados deveriam sofrer as penas desta mesma lei, e que ninguém deveria receber indulto sob forma alguma nem escapar do edito do império. O Eleitor da Saxônia (príncipe ou governo com direito a voto) aconselhado pelos teólogos de Wittenberg forçou Landgraf Philip a banir ou levar para a prisão alguns dos batistas, mas ele não foi além disto e pôde se orgulhar de que ninguém morreu sob seu governo. Permaneceu firme em seu posicionamento de que quaisquer que fossem as opiniões os que erravam deveriam se converter pela instrução e não pela força. Afirmou que havia mais gente de bem entre os chamados fanáticos do que entre os luteranos, e que não poderia, por força de sua consciência permitir punir ou matar qualquer pessoa por sua fé, quando não havia razão para assim proceder.

Havia muitos irmãos no distrito de Heidelberg, Alzey e Kreuznach. Somente no ano de 1529 trezentos e cinqüenta irmãos foram mortos. Perseguições cruéis como a que aconteceu em Alzey chamou a atenção do pastor evangélico Johann Odenbach, que  protestou, e portanto, merece ser honrado. O protesto foi dirigido aos “juízes encarregados de julgar os pobres prisioneiros de Alzey apelidados de anabatistas”, e afirma:

“Vocês, pobres e ignorantes (juízes) devem clamar diligentemente e honestamente ao reto Juiz e devem orar por socorro divino, e por sabedoria e graça. Assim, vocês não sujarão suas mãos com sangue inocente, ainda que a majestade imperial e os príncipes do mundo lhes dêem ordens de matar. Esses pobres prisioneiros com seu batismo, não cometeram pecado contra Deus nem Deus os condenará por terem sido batizados, nem tão pouco agiram contra o governo ou contra a humanidade para receberem tão severa punição. Pois o batismo certo ou o segundo batismo não tem em si o poder de vida ou de morte para alguém ser condenado.”

“Temos de permitir o batismo como um sinal de reconhecimento de que somos cristãos, de que estamos mortos para o mundo, que somos inimigos do diabo, desprezados, crucificados, que não antevemos o que é temporal, mas as eternas bênçãos; lutando constantemente contra a carne, contra o pecado e contra o diabo para poder viver a vida cristã. Muitos de vocês, juízes nem sabem a diferença entre o batismo certo e o errado para questionar os irmãos sob tortura. Com base nisto devem condenar uma pessoa à morte? Não! Afirmo isto não para apoiar o segundo batismo, que deveria ser julgado pelas escrituras sagradas e não pela forca. Assim, meus amigos, não usurpem o que pertence à majestade divina, para que a ira de Deus não venha sobre vocês como veio sobre os habitantes de Sodoma e sobre aqueles iníquos. Vocês tratam os ladrões, os assassinos com mais misericórdia do que essas criaturas que nunca roubaram nem mataram uma só alma, que não cometeram nenhum pecado vergonhoso, não são incendiários nem traidores, mas  são pessoas que foram batizadas segunda vez por amor a Deus, para honrar a Deus, sem prejudicar o próximo.”

“Como podem vocês decidir em seus corações e de sã consciência afirmar que estas pessoas devem ser decapitadas ou culpadas? Se vocês tratassem esses irmãos como os juizes cristãos devem agir, e se soubessem instruí-los à luz do evangelho, não haveria necessidade de enforcá-los. Agindo dessa maneira com justiça, a verdadeira doutrina prevalecerá e a prisão seria assim uma punição justa. Da mesma maneira devem agir os sacerdotes, levando esses irmãos aos ombros, como ovelhas errantes, de volta a Cristo, provando que sua obrigação é a de tratá-los com amor, confortando-as, sustentando-as, e restaurando esses irmãos a doutrina evangélica.”

“Não se enganem condenando essas pobres pessoas à morte. Vocês deveriam sentir terror ao tratar deste assunto, deveriam agonizar e suar sangue, pois vocês não sabem onde eles estão errando. Vocês deveriam prestar atenção quando essas pessoas dizem: ‘Desejamos ser instruídos pelas santas escrituras, pois estamos dispostos a viver uma vida que nos seja comprovada pelos evangelhos’. Pensem na vergonha eterna que vocês terão de enfrentar. Pensem na reação do povo quando essas pessoas forem mortas! Da boca do povo se ouvirá: ‘Veja a paciência, o amor, a adoração e a maneira como este povo morre, com que coragem lutaram contra o mundo!’. Oh! Que sejamos inculpáveis diante de Deus como eles o são; de fato eles não foram vencidos, enfrentaram o ódio, e são mártires de Deus. Todos haverão de dizer que nada foi feito contra o erro dos anabatistas para serem julgados de maneira sanguinária, e que vocês estão destruindo pela força o santo evangelho e a verdadeira pureza de Deus….”.

O resultado foi que aqueles juízes se recusaram a levar a julgamento as pessoas acusadas por sua fé.

Zwinglio fez a reforma protestante basicamente na Alemanha suíça. Em Cantão foi que ele tinha mais autoridade. Em 1523 ele impôs uma Igreja Estado em Zurique e o grande conselho ficou responsável em tomar decisões nos casos que afetassem a doutrina e a igreja. Um cristão conhecido como Muller levado ao Concílio disse: “Não oprimam minha consciência, porque a fé é uma graça concedida pela misericórdia de Deus e não deve receber intervenção de pessoa alguma. O mistério de Deus está oculto e é como um tesouro escondido num campo, que ninguém pode encontrar, a menos que o Espírito do Senhor mostre a pessoa. Portanto, suplico-lhes, como servos de Deus, deixem minha fé gozar da liberdade”. Isto não lhe foi permitido. A igreja estatal adotou os princípios da velha igreja, de que é justo tratar os heréticos pela prisão e morte.

Em anos anteriores Zwinglio mantinha um bom relacionamento com os Irmãos. Chegou a considerar a questão do batismo e afirmou que não havia base bíblica para o batismo de crianças. À medida que crescia o movimento pela reforma, contudo, a igreja estatal passou a depender do poder civil para tomar decisões e Zwinglio se afastou dos irmãos.

Os irmãos eram numerosos e ativos em Zurique, * com três proeminentes líderes, sendo que um deles, Konrad Grebel era amigo de Zwinglio. Grebel era filho de um membro do concílio de Zurique, formado com distinção e honra pelas universidades de Paris e Viena, e ao regressar a Zurique passou a freqüentar a congregação dos irmãos na cidade. O outro era Felix Manz eminente professor e conhecedor do hebraico, cuja mãe era fiel e fervorosa cristã e abriu uma igreja em sua casa. O terceiro era um irmão que já tinha sido monge e, influenciado pela Reforma saiu da igreja romana. Foi apelidado de “Blaurock” ou “Bluecoat” – casaco azul – e era chamado também de George, o Forte, devido ao seu tamanho e vigor.

Esses três eram incansáveis viajando e visitando casa por casa, pregando, exortando e muita gente aceitou o evangelho, foram batizadas e agregaram-se às igrejas. Em Zurique os irmãos faziam batismos públicos e se reuniam regularmente para a ceia do Senhor, que chamavam de “partir do pão”. Falavam de si mesmos como os verdadeiros filhos de Deus, mantinham-se separados do mundo, e neste “mundo” estavam incluídas tanto as igrejas Reformadas quanto as igrejas católico-romanas. O conselho proibiu essas coisas e formou-se uma audiência pública, mas como o concelho detinha o poder de decisão, decidiu que todos os que não tinham sido batizados deveriam batizar seus filhos em uma semana, e os batismos dos irmãos foram proibidos sob penas severas. Grebel, Manz e Blaurock , trabalharam ainda com mais empenho e as pessoas, aos milhares concorriam para ouvir a palavra de Deus e para serem batizadas. Grebel e Manz eram moderados e persuasivos, mas Blaurock possuía um incontrolável ardor e zelo, a ponto de entrar nas igrejas, interromper o culto e pregar a palavra. As pessoas gostavam dele, mas o conflito com as autoridades azedou o caldo, e muitos dos irmãos foram punidos de maneira severa. Blaurock não hesitou e pessoalmente disse a Zwinglio: “Vós, caro Zwinglio constantemente vos encontrastes com os papistas declarando que tudo o que não está na palavra de Deus não tem valor, e agora vós dizeis que muitas das coisas que não estão na palavra de Deus ajudam na comunhão com ele. Onde estão as palavras poderosas que vós usastes para contraditar o bispo Faber e todos os monges?”.

Finalmente os três pregadores e quinze outros, entre esses seis mulheres foram condenados à prisão com apenas água e pão para apodrecer e morrer, e todas as pessoas batizadas ou que fossem batizadas deveriam morrer por afogamento (1526). De alguma maneira os prisioneiros fugiram, porque muita gente gostava deles, mas as perseguições continuaram implacáveis nos Cantões de Berna e de St. Gallen onde as autoridades faziam de tudo para exterminar as igrejas. No Cantão de Berna 34 pessoas foram executadas, e as que fugiram para Biel onde havia uma comunidade de irmãos foram presas lá. Os irmãos que se reuniam secretamente nas florestas durante a noite foram descobertos, espalhados e precisaram encontrar outros lugares secretos para poder se reunir. Por este tempo Grebel morreu da praga. Blaurock foi capturado e preso e condenado. Sua pena foi terrível, pois deveria apanhar de vara pelas ruas da cidade até que deixasse um rastro de sangue e ele fosse banido da terra. Manz foi capturado, preso e afogado.

Mas nada disso impediu o crescimento da igreja, porque os irmãos fugiram para a vizinhança refugiando-se nas províncias austríacas do Tirol, e logo estabeleceram igrejas na região. George, o Forte viajou por todo o território do Tirol enfrentando os perigos e muita gente se converteu através de suas pregações, especialmente em Klausen onde um grande número de discípulos se firmou tornando-se ativos na pregação da palavra de Deus. Depois de escaparem várias vezes Blaurock e um companheiro, Hansen Langeger foram feitos prisioneiros e queimados em Klausen (1529).

Neste mesmo ano Michael Kirschner que dera bom testemunho do Senhor em Innsbruck foi queimado publicamente nesta cidade. O desafio de continuar a obra ficou a cargo de Jakob Huter, entre outros. No mesmo ano em que Blaurock foi queimado Huter estava numa reunião para partir o pão quando foi surpreendido pela polícia. 14 irmãos e irmãs fora presos, mas Huter e alguns outros conseguiram fugir. Sempre correndo perigo Huter viajava reconciliando as diferenças dos irmãos, encorajando-os ao sofrimento e pregando a palavra de Deus. A severa perseguição forçou a fuga dos irmãos para a Moravia, onde, por certo tempo gozavam de liberdade, mas as fronteiras foram vigiadas a fim de impedir as fugas. Foram feitos acordos com o governo de Veneza para que impedissem a fuga de irmãos para aquela região. Por toda Áustria o evangelho cresceu, novas igrejas foram fundadas, para depois serem fechadas e esmagadas pela perseguição.

No Tirol e em Görz mil pessoas foram queimadas, degoladas ou afogadas no rio. Em Zalzburg os irmãos foram pegos de surpresa quando se reuniam na casa do pastor e mortos. O povo apelou para que uma moça de dezesseis anos, bela e jovem não fosse morta, mas seus algozes  levaram-na nos braços, seguraram a jovem sob as águas, e, como ela não renunciava, foi afogada e seu corpo sem vida atirado na fogueira. Ambrosius Spittelmeyer de Linz depois de uma vida frutífera e de bom testemunho foi martirizado em Nurembergue. A igreja de Linz tinha um fiel supervisor, Wolfgang Brandhuber que Fo morto juntamente com setenta membros da igreja em 1528. Assim, em cada lugar o Senhor levantava suas testemunhas que o seguiam da maneira mais literal possível. Tropas do exército foram enviadas por todos esses países para buscar e matar os “heréticos” que eram mortos sem qualquer julgamento.

Ainda que apelidados de anabatistas * não foi a forma de batismo que lhes deu coragem para sofrer; eram pessoas que mantinham comunhão com o Redentor; nenhum homem nem uma fórmula interrompiam a comunhão dessas pessoas com Cristo. Os chamados místicos descobriram que ao viver em Cristo e Cristo neles podiam manter comunhão uns com os outros e vencer o mundo. Os que quisessem fazer parte da igreja tornando-se membro da casa de Deus, deveriam andar em Deus, e pregavam que quem estivesse fora da igreja estava fora de Cristo. O fato de rejeitarem o batismo infantil levantava questões sobre o que acontecia com as crianças que morriam cedo, mas, diziam, elas são participantes da vida eterna em Cristo.

Nas crônicas dos anabatistas austro-húngaros ficou registrado: “Os fundamentos do cristianismo foram colocados pelos apóstolos aqui e acolá e em diferentes países, mas a tirania e o falso ensinamento prejudicou e impediu que a igreja continuasse. O número de cristãos ficou tão reduzido que até parecia não existir mais aquela igreja verdadeira. Como afirmou o profeta Elias, os altares foram destruídos, os profetas mortos e ele ficou só; mas Deus não deixou sua igreja desaparecer totalmente. Caso contrário este artigo sobre a fé cristã seria considerado falso: ‘Creio que existe uma só igreja, uma só comunhão dos santos’. Se a igreja não podia ser localizada, se em certos períodos dois ou três se reuniam em algum lugar, assim, o Senhor, segundo sua promessa está com eles, e por permanecerem fieis à sua palavra, o Senhor nunca os abandonou, mas aumentou o numero de fieis. Só que, quando se descuidam e se esquecem das práticas cristãs, Deus retira deles os dons que lhes havia concedido, e desperta verdadeiros homens em outros lugares, dando-lhes dons para que, outra vez edifiquem sua igreja. Assim, o reino de Cristo desde os dias apostólicos até agora vagueia de nação em nação e, finalmente chegou até nós”.

“Em outras terras”, continua o relato, “houve um bom começo e até um final feliz quando as testemunhas deram suas vidas, mas a tirania do romanismo apagou quaisquer registros. Os Pickards e os waldenses sustentaram a verdade. No começo do reinado de Carlos V o Senhor voltou a derramar sua luz. Lutero e Zwinglio destruíram a maldade babilônica, mas não a substituíram por nada melhor, porque quando chegaram ao poder passaram a confiar mais nos homens que em Deus. Portanto, apesar de começarem bem, a luz da verdade desapareceu. É como se alguém fizesse um buraco no velho aquecedor tornando as coisas piores. Ergueram, portanto, um povo inclinado ao pecado. Muitos seguiram a Lutero e Zwinglio, agarrando-se aos seus ensinamentos como se fosse a verdade, e algumas pessoas deram suas vidas pela verdade, e estão salvas, sem dúvida alguma, pois lutaram uma causa justa”.

O documento descreve os conflitos com Zwinglio em Zurique com respeito ao batismo e de como Zwinglio, ainda que tenha provado que não se podia provar que o batismo de crianças fosse bíblico, ensinava mais tarde que o batismo de adultos e crentes está errado e não deve ser perpetuado. Depois houve o edito em Zurique decretando que os que fossem batizados deveriam morrer afogados. O documento mostra como os irmãos foram espalhados, alguns deles chegando a Áustria para pregar a palavra de Deus.

O crescimento das igrejas na Áustria e nas regiões adjacentes foi maravilhoso. O registro das pessoas que foram martirizadas e o sofrimento que enfrentaram mostram, que a perseguição foi implacável, no entanto os irmãos enfrentaram corajosamente a tarefa de evangelizar através dos anciãos e dos evangelistas. Um registro diz que “enfrentavam a morte com firmeza e alegria. Enquanto alguns morriam afogados, os demais, esperando a vez do martírio cantavam e entoavam louvores, esperando o momento em que seus executores os levassem para o martírio. Estavam arraigados na verdade em que criam e se fortaleciam na fé em Deus”.

Tal disposição deixava seus perseguidores atônitos que se perguntavam de onde os irmãos tiravam coragem e força. Várias pessoas se convertiam ao virem os irmãos sendo mortos, mas os líderes religiosos tanto da igreja católica romana como da igreja reformada afirmavam que a força deles vinha de Satã. Os irmãos mesmo diziam: “Eles beberam das águas que corriam do santuário de Deus, da fonte da Vida, e por isso seus corações eram fortalecidos além da compreensão humana. Descobriram que Deus os ajudava a levar a cruz e venceram a morte. A fé desses irmãos floresceu como florescem os lírios, sua fidelidade desabrochou como a rosa, e sua vida piedosa como as flores do jardim de Deus. O anjo do Senhor estava diante deles revolvendo a lança para que o capacete da salvação e o escudo de ouro de Davi não lhes fossem tirados. Os mártires ouviram o som da trombeta de Sião, por isso não temeram o sofrimento nem a morte pelo martírio. O temperamento santo desses irmãos avaliava as riquezas terreais como sombras, sabendo que lhes esperavam grandes coisas. Eram treinados de Deus, por isso nada sabiam, nada buscavam, nada amavam, a não ser s coisas eternas de Deus.  Mostravam-se mais pacientes nos sofrimentos do que seus inimigos que lhes infligiam dor.”

O rei Ferdinando I irmão de Carlos V da Espanha tornou-se ferrenho perseguidor dos irmãos. * Entre os encarregados pelo rei de matar e perseguir, havia os que sentiam tanta pena dos mais fracos e dos mais tementes que os deixavam escapar, mas Ferdinando dava ordens e instruções para que fossem ferozes, e se não cumprissem suas ordens seriam castigados. Por isso alguns magistrados do Tirol se escusavam diante das ameaças do rei e escreviam coisas assim: “Por mais de dois anos, quase todos os dias a questão anabatista aparece diante da corte, e mais de 700 homens e mulheres foram condenados à morte no Tirol da Alemanha e em outros lugares, enquanto outros foram banidos do país, e outros fugiram na miséria, deixando para trás seus pertences, e até mesmo deixando seus filhos… Não concordamos com Vossa Majestade com a culpa dessas pessoas, porque não têm medo de serem punidos, e enfrentam a morte com firmeza, além de que visitam os prisioneiros e  os exortam como seus irmãos em Cristo, sem medo de serem torturados. Não aceitam serem instruídos nem voltam atrás de sua fé, e, na maioria das vezes preferem morrer… esperamos que Vossa Real Majestade aceite nosso relato, porque com fidelidade temos nos empenhado na tarefa.”

Depois que Ferdinando tornou-se rei também da Boêmia, os irmãos perderam seu lugar de refúgio e não havia agora lugar para onde fugir. Ofereciam-se altas recompensas aos que traíssem um “anabatista” e o entregasse nas mãos do governo. Os bens dos mártires eram usados para pagar as despesas da perseguição. Mulheres grávidas eram deixadas na prisão onde tinham seus filhos, e depois eram mortas. Um magistrado em Sillian, Jörge Scharlinger ficou tão perturbado com a ordem de matar dois rapazes de 16 e 17 anos, que postergou a sentença desculpando-se de que precisava investigar um pouco mais. Houve um acordo em tais casos que os acusados deveriam estudar numa instituição católica romana, tendo as despesas pagas com os bens dos anabatistas até os 18 anos, e se não renunciassem eram executados. Imagine um jovem que amava o Senhor esperando fazer 18 anos sob tais condições!

A situação piorava a cada dia, mas Jacok Huter nunca deixou de se reunir nas florestas ou em casas isoladas, e os irmãos e irmãs viviam com risco de morte só pelo fato de os hospedar. Certa ocasião ele e mais quarenta irmãos estavam reunidos para partir o pão quando a casa foi invadida pela polícia e os soldados levaram sete deles como prisioneiros. O resto conseguiu escapar entre eles Huter, mas logo Huter foi preso traído por um falso irmão. A casa onde estava hospedado foi cercada durante a noite pelo exército e ele, sua esposa, uma menina e a dona da casa, uma mulher idosa, foram feitos prisioneiros. Para que não falasse a verdade Jacok Huter foi amordaçado – um nó dentro da boca – e levado para Innsbruck, onde houve muita alegria por sua captura, já que o rei pedia que não descansassem até que Huter fosse encontrado.  O rei, logo que soube da prisão de Huter ordenou que fosse morto, ainda que renunciasse à sua fé. Huter não era do tipo que renunciava, ao contrário usou de palavras violentas para denunciar o rei, o Papa e os sacerdotes daqueles dias. Foi feito um requerimento solicitando ao rei que Huter fosse decapitado em secreto para não haver tumulto entre o povo, mas o pedido não foi aceito por Ferdinando que insistiu que Huter fosse queimado em praça pública. Ele foi martirizado em 1536.

Hans Mändl um homem de espírito generoso e corajoso assumiu o lugar de liderança entre os irmãos deixado por Huter. Hans granjeou confiança e amizade entre os irmãos por ser talentoso e devoto. Somente no Tirol ele batizou 400 pessoas. Hans Mändl foi várias vezes preso e o clérigo enviado para o converter reclamava da maneira educada como os magistrados o tratavam, e suas constantes fugas da prisão eram indícios de que alguém da alta corte o protegia. Numa ocasião, logo depois de fugir ele se reuniu e pregou para mais de mil pessoas numa floresta, para ser preso novamente (1560). Desta vez foi lançado num calabouço fétido numa torre de Innsbruck onde mais dois irmãos estavam confinados. Do fundo do calabouço escreveu: “Estou preso na torre onde meu querido irmão Jörg Liebich foi jogado anos atrás… ele está aqui no fundo, mas da janela do alto uma réstia de luz o ilumina… enfrentei a tortura sem medo como nunca dantes. Depois de me interrogar por três dias jogaram-me de volta na cela fétida de onde podia ouvir o barulho das minhocas e lagartas pela parede; morcegos fazem vôos rasantes sobre nossas cabeças, camundongos e ratos passeiam pela cela, mas Deus torna as coisas mais fáceis pra mim.”

Perguntaram a  Jörg Liebich quem o induziu a ser batizado. Ele respondeu que antes de começar na fé ouvira a respeito de um homem chamado Jakob Huter que morrera na fogueira em Innsbruck e que, ao ser preso colocaram uma mordaça em sua boca para que ele não falasse a verdade. Ouvira falar também de Ulrich Müllner que em Klausen foi condenado a morte, um homem amado pelo povo e tido como exemplo de fidelidade. Este também testemunhara de um homem que ele viu ser queimado na fogueira por causa de sua fé. Considerou estas coisas em seu coração e reconheceu que somente pela graça de Deus alguém poderia afirmar e confessar sua fé até a morte, e esta foi a razão porque começou a investigar a respeito dos irmãos. Os três prisioneiros responderam todas as perguntas calmamente provando o que criam pelas Escrituras. Afirmaram que, mesmo não tendo onde viver, porque eram perseguidos por toda parte anelavam o dia em que seriam recompensados cem vezes mais. Afirmavam que sua fé não era o de uma “seita amaldiçoada” como se referiam seus inimigos, e que não tinham líderes. Mändl explicou que os irmãos, reunidos em assembléia o apontaram como líder e mestre.

Doze homens foram escolhidos em Innsbruck e nos distritos para compor o júri. Depois de jurar de que agiriam conforme pensavam foi-lhes solicitado que deveriam concordar com o decreto do Imperador a respeito dos prisioneiros, o que implicava condená-los à morte. Todos se recusaram. A perseguição era feroz, mas Ferdinando, agora Imperador não quis agir duramente com estes com medo da oposição. Os homens foram argüidos, nove deles passaram a concordar com o edito do rei, mas três deles se recusaram, e foram presos. Depois de alguns dias presos estes também concordaram e os jurados, sob juramento deram o veredicto de morte. Mändl foi condenado à fogueira, e os outros dois à morte por decapitação. Antes de morrerem deixaram uma mensagem aos irmãos: “Queremos lhes dizer que logo depois da festa de Corpus Cristo eles nos condenarão e então cumpriremos nossos votos para com Deus. É com alegria, e não com tristeza, porque o dia do nosso martírio é dia santo para Deus”.

Entre os da multidão que vieram testemunhar a morte desses homens estava Leonhard Dax, ex-padre, agora um dos irmãos, que saudava amistosamente os prisioneiros quando estes passavam por ele, sem temor algum. Os que iam ser mortos falavam à multidão para que se arrependessem e se tornassem testemunhas da verdade. Quando leram a sentença de morte eles reprovaram a atitude dos magistrados e do júri por derramarem sangue inocente, e estes se desculpavam afirmando que agiam sob as ordens do imperador… “Ó mundo cego”, bramou Mändl, “cada pessoa deveria agir conforme manda seu coração, e sua consciência, mas vocês nos condenam conforme as ordens do Imperador!”. Pregavam para o povo até que Mändl ficou rouco. “Pare, Hans!” gritou um magistrado, mas Mändl continuou e disse: “Tenho testificado e falado da verdade divina”. Falaram até a hora de morrer, porque ninguém conseguia detê-los. Um deles estava tão abatido e enfermo que se temia que morresse antes da sentença ser aplicada, por isso logo foi decapitado. Os demais olharam para seus executores e um deles gritou com coragem triunfante: “Neste local esqueço de minha esposa e filho, casas e terras, corpo e vida por amor da fé e da verdade”. Então, ajoelhou-se e ofereceu o pescoço para receber o golpe final. Hans Mändl foi amarrado numa estaca e jogado vivo nas chamas da fogueira onde ardiam os corpos de seus companheiros. Havia ali uma testemunha, Paul Lenz  que levou a sério o que viu e se uniu aos irmãos pelos sofrimentos de Cristo.

Em alguns lugares, especialmente na Moravia os irmãos viviam em comunidades, sob o mesmo teto, em grandes casas e tinham todas as coisas em comum. Assim, buscavam refúgio, favorecidos pelas autoridades distritais para onde acorriam os perseguidos. Outros viviam em comunidades para imitar os primeiros cristãos de Jerusalém. É bem verdade que a vida em comunidade foi uma das marcas da igreja de Jerusalém no começo da igreja, porque podiam se encontrar no templo, com liberdade, mas não era algo compulsório, e sim voluntário. As comunidades da Moravia e de outras regiões tornaram-se locais de refúgio para muita gente. Eles tiveram muitas experiências espirituais naqueles dias, e o excelente trabalho nas fazendas e a capacidade profissional desses irmãos lhes permitiam viver com fartura. Havia também algumas desvantagens na vida em comunidade. A educação dos filhos era diferente de uma educação dada pelos pais. Podia-se notar alguma morosidade em certas pessoas e muitas das divisões e enfraquecimento de igrejas tiveram sua origem na vida em comunidade. Quando havia guerras por posses de regiões os soldados eram atraídos pela riqueza e suprimentos dessas comunidades, por isso muitos irmãos abandonaram a vida comum.

Münster

Foi durante este tempo que alguns eventos aconteceram em Münster, os quais sem qualquer ligação com as congregações cristãs causaram mais prejuízos na Alemanha do que qualquer coisa acontecida anteriormente. Numa época de grande fervor espiritual, pessoas desequilibradas viviam no extremo. A crueldade sofrida pelos irmãos por causa de sua fé deixou muita gente indignada contra as autoridades, e tais pessoas passaram a respeitar os irmãos. Alia-se tudo isto ao fato de que a matança sistemática dos mais inteligentes e sábios, aqueles que eram verdadeiros líderes da igreja, deixou uma lacuna, pois agora não havia homens capazes de controlar os exageros e o fanatismo abrindo espaço para o surgimento de pessoas inferiores que ocupavam a liderança. A cruel perseguição aos irmãos deixou a impressão de que chegara o dia da redenção, dia de vingança sobre os opressores. E surgiram pessoas querendo ser profetas, predizendo a chegada e estabelecimento do reino de Cristo.

Münster * era a capital de um principado governado por um bispo que detinha o poder civil e religioso da cidade. Ele aumentou os impostos e preencheu os cargos mais importantes com membros do clero. E isto deixou os cidadãos descontentes. Bernard Rothmann, era um jovem teólogo e inquiridor que viajava por toda parte, que já se encontrara com Lutero, mas era influenciado por Capito e por Schwenckfeld que ele encontrara em Estrasburgo. Pregador loquaz e bastante simpático, possuía hábitos acéticos e apoiava os oprimidos pelo Estado. Quando chegou a Münster atraiu multidões para ouvi-lo  provocando emoções nas pessoas, a ponto de muitos cidadãos atacarem a igreja de St. Maurice quebrando e destruindo todas as imagens. Para barrar a desordem o bispo utilizou o exército, mas Philip, Landgraf de Hessen interveio e, conseqüentemente Münster foi declarada cidade evangélica anexada à Liga dos Principados Protestantes.

Esta decisão atraiu para Münster muita gente que era perseguida nos territórios católicos, locais onde não tinham sossego. Veio gente de todo tipo, alguns santos, perseguidos por amor a Cristo a quem as pessoas acolheram com honras, mas vieram também desordeiros ou fanáticos que com sua presença deixaram a cidade a perigo. Muitos dos que vieram residir em Münster haviam perdido todas suas posses e foram acolhidos na cidade pelo testemunho de Rothmann e por seus ensinamentos. Um dos imigrantes convenceu a  Rothmann de que o batismo infantil não era bíblico, e ele, por uma questão de consciência teria de rejeitá-lo. Conseqüentemente os magistrados da cidade cancelaram suas credenciais de pregador, mas ele era tão popular que continuou em sua missão de pregador, e uma assembléia pública teve lugar para que Rothmann provasse sua teoria bíblica do batismo. Um pregador anabatista, um dos forasteiros que vivia na cidade, pela violência de seu linguajar levantou um tumulto e os magistrados tiveram que prendê-lo, mas ele foi solto e o conflito chegou a tal proporção que os magistrados foram depostos de seus cargos e um conselho anabatista ocupou o lugar deles.

Enquanto isto o bispo arregimentava tropas para investir contra a cidade, e cortou todo o suprimento, trazendo conseqüências sérias para todos os estrangeiros que dependiam de ajuda para se alimentar. Entre os imigrantes havia dois alemães que passaram a influenciar os destinos de Münster, Jan Matthys e Jan Bockelson, este um alfaiate conhecido como John de Leyden. Matthys era alto, de aparência forte e autoritária, que fazia a multidão delirar enquanto pregava, declarou-se um profeta e muitos passaram a crer nele. Ele era um daqueles fanáticos que vai de um extremo a outro, e o perigo reside em sua sinceridade. Ele passou a controlar o conselho, e impôs seu ponto de vista de que todos teriam que se separar do mundo, e fez que se promulgassem uma ordem de que todos os que não eram batizados deveriam deixar a cidade.

O decreto afirmava que em alguns dias todos deveriam ser batizados, do contrário teriam que abandonar a cidade de Münster ou seriam mortos. Muita gente foi batizada, mas outro tanto abandonou a cidade. Foi uma atitude perversa e fanática, mas não tão perversa como agiram as igrejas estatais durante séculos condenando a morte cruel os que não aceitavam o batismo infantil. Com a cidade purgada dos “incrédulos” as mudanças foram rápidas, com a introdução da vida comunitária, repartimento de bens, especialmente porque o cerco não permitia a entrada de cereais. O domingo foi abolido como guarda semanal e todos os dias foram considerados iguais, A ceia do Senhor passou a ser celebrada publicamente com muitas pregações. Mathys passou a controlar a distribuição de alimentos e de outras necessidades, auxiliado por sete diáconos que ele mesmo escolhera, e isto deu lugar a um novo conflito.

Um sapateiro, Hubert Rüscher colocou-se à frente de um grupo de cidadãos que originalmente moravam na cidade e passou a protestar contra os estrangeiros que agora controlavam a administração da cidade. Expressou assim sua indignação com o que estava acontecendo. Uma assembléia do povo foi convocada a se reunir na praça da catedral em que Mathys condenou Rüscher à morte e Bockelson dizendo haver recebido uma revelação tomou a si o direito de executar a sentença, ferindo o sapateiro com seu cajado. Três homens protestaram contra esta injustiça e por pouco não foram mortos, fugindo da cidade. Alguns dias depois o homem ferido foi executado pelo próprio Mathys, e assim se perpetuou o domínio da cidade.

Durante todo este tempo as tropas lutavam contra as forças do bispo e as provisões de alimentos passaram a escassear. Certa noite Jan Mathys assentado à mesa do jantar na casa de uns amigos caiu em profunda meditação. Depois, levantou-se e disse: “Amado Pai, seja feita a tua vontade e não a minha”. Beijou seus amigos e partiu com sua esposa. No dia seguinte saiu da cidade com vinte companheiros, marchou até onde estava o exército inimigo e os atacou. A luta foi renhida e um a um seus soldados caíram na batalha até que por último o próprio Jan Mathys morreu.

O povo da cidade ficou consternado, mas Jan Bockelson assumiu o poder e disse que recebera uma revelação de que o conselho deveria ser abolido, como instituição humana; depôs o conselho e reinou soberano indicando doze anciãos que estariam associados com ele. Ele unia o poder da oratória aos dons de liderança e organização. Editou novas leis para o que chamou de “novo Israel” e o povo passou a crer que eles eram objeto do amor e da graça de Deus, e que eram a verdadeira igreja apostólica, sendo que Münster se tornaria o modelo de cidade a ser imitado em todo mundo, sobre o qual eles reinariam. O número de mulheres na cidade era bem maior que o de homens e havia também muitas crianças. Em julho de 1534 Bockelson convocou a Rothmann e outros pregadores juntamente com os doze anciãos para o paço municipal e deixou-os perplexos quando declarou que introduziria a poligamia na cidade.

Jamais se ouvira tal proposta em praça pública pois o povo da cidade era religioso e acostumara-se a uma vida de autonegação, e a moral da cidade era elevada para os padrões da época. Algumas semanas antes um folheto fora impresso na cidade tratando o casamento como algo sagrado e contra a indissolubilidade do casamento. A proposta de Bockelson entristeceu os anciãos e os pregadores, mas ele não desistia de seu intento e durante oito dias argumentou e insistiu usando de sua influência e eloqüência. Ele se utilizou das fraquezas dos homens do Antigo Testamento para provar a poligamia pelas Escrituras. E poderia argumentar na mesma base a favor do pecado. Seu principal argumento consistia na necessidade de prover casamento ao grande número de mulheres na cidade. Finalmente ele convenceu a todos e durante cinco dias os pregadores pregaram sobre a poligamia na praça da catedral. Depois dos cinco dias Bernard Rothmann promulgou uma lei para que todas as moças se casassem e que as mais velhas fossem amparadas na casa de algum homem. Bockelson (talvez aqui esteja a razão de suas leis) imediatamente se casou com Divara, a viúva de Jan Mathys, uma mulher atraente e talentosa. A oposição, no entanto era forte a ponto de aguçar uma guerra civil dentro da cidade que já sofria um cerco. O ferreiro Heinrich Möllenbecker liderou uma revolta e prendeu alguns dos pregadores que falavam na praça da cidade, ameaçando abrir as portas da cidade sitiada se o antigo sistema de governo não fosse restaurado. Parecia que o governo de Bockelson chegara ao fim, mas os pregadores fincaram pé ao lado dele – além das mulheres que o apoiavam – mas a oposição era bem maior, e o paço municipal foi apedrejado e toda resistência quebrada. Os efeitos da nova lei causaram muito dano e antes do fim do ano a lei foi abolida.

Apesar dessas disputas internas a cidade foi defendida do inimigo. Havia alguma esperança de ajuda externa. Um estágio maior foi alcançado quando Bockelson foi proclamado rei. Ele tinha seu profeta, um antigo ferreiro que na praça do mercado anunciou que John de Leyden era o novo rei de toda terra, e anunciou o nome do novo reino,  a Nova Sião. A coroação foi feita com grande pompa na praça do mercado; o ouro recolhido do povo foi usado para fazer a coroa e o emblema real. Dentre suas muitas esposas Divara foi escolhida rainha. A provisão para o rei e seus guarda-costas e para a corte, e para os que serviam a rainha era suntuoso em cada detalhe, mas o povo não se contentava com as promessas de um novo reino. O reinado prosseguiu, mas alguém traiu o rei abriu os portões para o exército do bispo que invadiu e tomou a cidade. Começou então a matança dos habitantes; ninguém escapou. Um grupo de 300 pessoas que se defendiam das tropas no mercado recebeu a promessa de um salvo-conduto para deixar a cidade se apenas depusessem suas armas. Eles depuseram as armas, mas a promessa foi quebrada e todos foram mortos.

Uma corte se instalou para julgar os anabatistas que não haviam sido mortos. Divara seria preservada se renunciasse, mas ela preferiu morrer. Jan de Leyden e outros líderes foram torturados publicamente e executado no mesmo local onde havia sido coroado rei, e seus corpos ficaram expostos na torre da igreja de St. Lambert (1535).

Devido a este acontecimento o nome anabatista se tornou sinônimo de dissensão. Muitas igrejas e irmãos foram acusados de iniqüidade e de erros a ponto de as pessoas aceitarem as acusações contra eles sem qualquer questionamento. Os livros dos irmãos foram queimados e qualquer erro doutrinário era atribuído a eles. Mesmo com uma vida santa e pura esses irmãos eram perseguidos, especialmente depois dos acontecimentos de Münster. Chamados de paulinos, albingenses, waldenses, lolardos, anabatistas e por tantos outros apelidos, esses irmãos carregavam consigo o estigma de que eram hereges, sismáticos, que viravam o mundo de cabeça pra baixo. Sem dúvida que compareceram perante o mesmo Juiz que recebeu Estevão, apedrejado pelos doutores daqueles dias.

A continuidade deste tema está em: O surgimento dos menonitas.


* “Die reformationa und die alteren Reformpartein”, Dr. Ludwig Keller, que dá autorização.

* “Neue Studien zur Geschichte der Theologie und der Kirche”, Herausgegeben Von N. Bonwetsch, Göttingen un R. Seeberg, Berlin, Zwanzigstes Stück. “D. Baltahasar Hubmeyer als Theologe” (Berlin, Trowizch & Sohn, 1914( von Carl Sachsse.

* Ein Apostel der Wiedertäufer, Dr. Ludwig Keller

* Reformations Geschichte Augsburg, Friedrich Roth, Munique, 1881.

* Vorträge und Aufsäge aus der Comenius Gesellschaft.

* Fontes Rerum Austriacarum. Oesterreichische Geschichts-Quellen, Abth. 2 Bd. 43…

* Archiv für Oesterreichische Geschichte, 78 Bd. “Der Anabaptismus in Tirol u.s. w”. Aus dem Nachlasse des Hofrates Joseph R. von Beck, Herausgegeben von Joh. Loserth.

* History of the Reformation, T.M. Lindsay, M.A. D.D. Edimburg, 1907, “Geschichte der Wiedertäufer und ihres Reichs zu Münster, Dr. Ludwig Keller, 1880.

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