Geralmente quando pensamos na Reforma do cristianismo do século XVI, lembramos da grande mudança doutrinária da justificação pela fé e da desvinculação da autoridade central de Roma. Poucos sabem, talvez, como a Reforma mudou a atitude dos cristãos em relação ao dinheiro.
Martinho Lutero trouxe as boas-novas de que o valor da pessoa era totalmente independente do seu sucesso, que era avaliado ou em termos de renúncia do mundo ou em quantidade de bens adquiridos. Com isso, passou a travar uma batalha dupla, tanto contra o ascetismo monástico quanto contra o emergente capitalismo. Na verdade, os dois — salvação por obras e esforço humano — são os lados da mesma moeda.
Os pobres ganhavam mérito por sua pobreza e humildade, e os ricos o ganhavam por contribuir generosamente para os necessitados. Os gananciosos usavam mal as coisas materiais em seu desejo de adquirir posses e bens; os ascetas se relacionavam mal com o mundo no seu esforço de abandoná-lo. O resultado final em ambos os casos era insegurança pessoal, já que se colocava confiança na realização pessoal, e não em Deus.
Os princípios capitalistas, como a idéia de ganhar dinheiro usando o próprio dinheiro, ainda estavam incipientes no tempo de Lutero, mas ganhando força e influência. Lutero abominava os capitalistas calculistas, pois percebia que sua prática divorciava o dinheiro de finalidades humanitárias e criava uma economia de aquisição. Pregava continuamente contra a crescente economia de créditos e empréstimos e identificava os avarentos e agiotas como os maiores inimigos da humanidade, depois do próprio Diabo.
A fim de aumentar sua renda, dizia Lutero, o agiota deseja que o mundo inteiro se arruíne e que assim haja fome, sede, miséria e necessidade; dessa forma, todos dependerão dele e serão seus escravos, como se ele fosse Deus.
Essa cobiça por lucros, segundo ele, tinha diversas e engenhosas expressões: vendas a prazo, empréstimos, manipulação do mercado por reter ou despejar mercadorias, criação de cartéis e monopólios, falsificação de falências, comércio de futuros e falsificação de bens. Essas maneiras de disfarçar a prática de juros abusivos (usura) afetavam a todos, principalmente aos pobres. Por isso, Lutero exortava aos pastores que condenassem a usura colocando-a na mesma classe do roubo e do homicídio e não aceitassem agiotas na comunhão, a menos que se arrependessem.
É importante observar que a preocupação de Lutero não era somente com relação ao uso individual do dinheiro, mas principalmente quanto ao sério dano social inerente na idolatria das leis do mercado. A idéia de um mercado impessoal e de leis autônomas da economia era repugnante para ele, pois a percebia como idólatra e socialmente destrutiva. Considerava que a sociedade inteira seria ameaçada pelo poder financeiro de um pequeno número de grandes centros econômicos. A emergente economia mundial já estava começando a engolir as economias locais e urbanas e logo haveria uma força econômica imune a outras leis ou princípios, que destruiria o etos (natureza moral e princípios governantes) da comunidade local.
Por isso, Lutero acreditava que a Igreja tinha de assumir uma posição fundamental contrária ao capitalismo. Não só devia publicamente rejeitar e condenar tais movimentos econômicos, mas também desenvolver uma ética social construtiva em resposta a eles. Essa ética social incluiria políticas de bem-estar social, legislação e maior prestação de contas das empresas ao público por meio de regulamentos do governo.
Na prática, Lutero instituiu diversas ordenanças como parte da sua convicção de que políticas sociais para prevenir e remediar a pobreza são uma responsabilidade cristã. No sentido de criar uma nova consciência e responsabilidade dentro das igrejas, ele conseguiu desespiritualizar a pobreza e levantar diversas soluções práticas para erradicá-la. Começando em Wittenburg, criou um caixa comum para o trabalho social, com fundos de doações, e complementado depois por impostos. Mendigar era proibido; empréstimos sem juros eram oferecidos a artesãos que podiam pagar de volta da forma que pudessem; havia provisões para órfãos sem recursos, filhos de famílias pobres e dotes para o casamento de moças pobres; para quem já tivesse tomado um empréstimo a juros altos, o caixa comum o refinanciaria por apenas 4% ao ano; havia também auxílio para educação ou treinamento vocacional de crianças pobres. A idéia espalhou-se rapidamente, e logo muitas outras cidades implantaram o mesmo tipo de fundo social.
Porém, como bem sabemos pela História, a tentativa de combater a expansão da economia capitalista pelo mundo inteiro não foi bem-sucedida. Os banqueiros que cobravam até 50% de juros ao ano, se fizeram de surdos diante dos apelos de Lutero para que estabelecessem um teto de 5%. Sua crítica ao capitalismo ia muito além da cobrança de juros exorbitantes. Para ele, a necessidade social sempre deveria prevalecer sobre ganho pessoal. As dívidas dos pobres deviam ser canceladas, e ajuda deveria ser-lhes oferecida para que pudessem se levantar.
Obviamente, foi mais fácil levantar auxílio a indivíduos do que frear as práticas econômicas do sistema que gera a pobreza. As condições lamentáveis da miséria clamam por ação, enquanto os apetrechos atraentes do capitalismo abafam o sentimento de crítica.
Porém, os efeitos desse capitalismo primitivo se fizeram sentir já naquela época. Em Wittenberg, entre 1520 e 1538, os preços dobraram enquanto os salários permaneceram inalterados. Lutero chamava isso de homicídio e roubo disfarçados.
Lutero achou que seria possível implantar a justiça, combatendo práticas erradas e estabelecendo leis baseadas nos princípios de Deus, por meio de uma Igreja fundamentada na Palavra de Deus dirigindo a sociedade em conjunto com as autoridades civis. Em outras palavras, ele manteve a idéia da Igreja estatal à semelhança da Igreja Católica, tentando mudar apenas os princípios bíblicos e o tipo de estrutura e governo eclesiástico.
Apesar do seu fracasso em mudar a sociedade civil, muitas pessoas em gerações posteriores continuaram tentando, dedicando seus esforços em direções totalmente erradas. Esta idéia ainda existe até hoje entre diversos grupos e movimentos (veja Impacto, edição n.º, que explora em mais profundidade este tema).
Entretanto, é extremamente esclarecedor notar a percepção de Lutero quanto às falhas inerentes no capitalismo e à incompatibilidade que deve existir entre a Igreja e esse sistema opressor e maligno. Durante toda sua carreira, Lutero lutou contra aquilo que identificou como as duas faces de Mamom: a fuga ascética do dinheiro e o impulso ganancioso de adquiri-lo. Assim, não devemos aceitar o dinheiro como senhor da vida, mas considerá-lo como dom de Deus para servir ao próximo e edificar a comunidade.