1. Representar a Deus por meio de imagens é corromper a sua glória
Como as Escrituras levam em cota o limitado e tacanho conhecimento humano, costumam elas expressarem-se de modo acessível à mente popular, quando seu objetivo é distinguir o Deus verdadeiro dos deuses falsos. Elas contrastam o Deus verdadeiro com os ídolos, e, ao fazerem isso, não estão aprovando o que de mais sutil e elegante os filósofos ensinaram, mas estão, antes, desnudando a loucura do mundo mais do que isso, a sua completa loucura, quando, ao buscar a Deus, cada um, a todo tempo se apega às suas próprias especulações.
Por essa razão, a definição que por toda parte se mostra a respeito da unicidade de Deus reduz a nada tudo quanto os homens inventaram para si no que diz respeito à Divindade, pois somente o próprio Deus é testemunha idônea de si mesmo.
Por isso, pelo fato de esse embrutecimento degradante Ter-se apossado do mundo inteiro, de maneira que os homens procurassem representar a Deus de forma visível forjando deuses de madeira, de pedra, de ouro, de prata ou de outro material qualquer inanimado ou corruptível temos de nos apegar ao seguinte princípio: Todas as vezes que se atribui a Deus qualquer forma de representação, a Sua glória é corrompida de ímpio engano. Na Lei, depois de atribuir a Si mesmo a glória da Divindade, quando quer ensinar que tipo de adoração aprova ou rejeita, Deus acrescenta imediatamente: Não farás para ti imagens esculpidas, nem semelhança qualquer (Ex 20.45), palavras com as quais nos proíbe o desenfreamento de tentar representá-lo por meio de qualquer figura visível. E mostra, de maneira breve, todas as formas pelas quais, desde há muito tempo, a superstição dos homens começou a transformar a sua verdade em mentira.
Ora, sabemos que os persas adoravam o Sol e também sabemos que outros povos estultos inventaram para si outros tantos deuses quantas são as estrelas nos céus. Para os egípcios não houve nenhum animal que não representasse uma divindade. Já os gregos, devemos reconhecer, parece, foram mais sábios do que os demais povos, pois adoravam a Deus sob a forma humana. Deus, porém, não compara essas imagens entre si, como se uma fosse mais apropriada do que outras; ao contrário, repudia a todas as efígies esculpidas, sem exceção, incluindo pinturas e representações por meio das quais os supersticiosos imaginaram que Ele devia estar perto.
2. Representar a Deus por meio de imagens é contrariar o seu ser
Das razões que Deus acrescenta às proibições é fácil concluir o seguinte: Primeiro, em Moisés (Dt 4.15): Lembra-te do que o Senhor te falou no vale de Horebe: Ouviste uma voz, não viste corpo; guarda-te, portanto, a ti mesmo, para que não aconteça que, porventura, enganado, faças para ti qualquer representação, etc. Aí vemos como Deus opõe sua voz abertamente a todas as representações, a fim de sabermos que os que buscam representá-lo de forma visível afastam-se Dele.
Entre os Profetas, será suficiente citar só Isaías, que é o mais enfático ao demonstrar isso, pois ele ensina que a majestade de Deus é manchada de vil e absurda invenção, quando o incorpóreo é feito semelhante à matéria corpórea, quando o invisível é representado de forma visível ou quando o espírito é feito semelhante à coisa inanimada ou, ainda, quando o imenso é reduzido a um pedaço de madeira, de pedra ou de ouro (Is 40.18; 41.7,29; 45.9 e46.5). Paulo também raciocina de modo idêntico: Visto que somos geração de Deus, não devemos pensar que o Divino é semelhante ao ouro, e à prata trabalhada pela arte ou invenção do homem (At. 17.29). Disto fica claro que qualquer estátua que se erige ou imagem que se pinta para representar a Deus simplesmente o ofende, como também afronta a sua majestade.
E não devemos nos admirar do fato de o Espírito Santo, do céu, proclamar esses oráculos, pois Ele compele até mesmo os cegos e idólatras da terra a fazerem essa confissão. A queixa de Sêneca, que se lê em Agostinho, é muito conhecida. Diz ele: Dedicam os deuses sagrados, imortais e invioláveis em matéria mui vil e desprezível, revestindo-os com a aparência de homem e de feras; algumas até os representam como hermafroditas (= sexos misturados) e corpos diversos, e os chamam de divindade, são figuras que, se recebessem vida, seriam tidas por monstros, quando as víssemos!
Disto se evidencia novamente, mui às claras, que se apóiam em inútil sofisma os que defendem imagens, dizendo que elas foram proibidas aos judeus, porque eles eram inclinados à superstição. Como se pertencesse a um só povo aquilo que Deus, na verdade, revela de sua eterna essência e da contínua ordem da natureza! E Paulo, quando impugnou o erro em representar a Deus por meio de imagem, não estava falando aos judeus, mas aos atenienses.
3. As manifestações e sinais que mostram a presença de Deus não servem de base para as imagens
O fato de, vez por outra, Deus Ter mostrado a presença de sua majestade divina por meio de sinais definidos, os leva à conclusão de que se poderia dizer que Ele foi visto face a face. Porém, todos os sinais com que Deus se manifestou aos homens ajustavam-se mui adequadamente ao seu método de ensinar, ao mesmo tempo em que serviam de advertência aos homens, para dizer-lhes, explicitamente, que a sua essência era incompreensível.
Ora, a nuvem, a fumaça e a chama se bem que fossem símbolos da glória celeste (Dt 4.11), como um freio interposto, impediam que as mentes de todos tentassem penetrar mais fundo (no conhecimento de Deus). Por isso, nem mesmo a Moisés, a quem Deus, contudo, se manifestou mais intimamente do que aos outros, conseguiu com suas súplicas contemplar a face de Deus, mas recebeu como resposta que o homem não é apto para receber o impacto de tão grande esplendor (Ex 33.20).
O Espírito Santo apareceu em forma de pomba (Mt 3.16; Mc 1.10; e Lc 3.22), mas pelo fato de Ter-se desvanecido rapidamente, quem não percebe que, pelo símbolo de apenas um momento, os fiéis foram advertidos de que se deve crer no Espírito como um ser invisível, de modo que, contentes com o seu poder e graça, não evocassem para si nenhuma representação externa?
O Ter Deus aparecido, de quando em quando, em forma de homem foi na verdade antecipação da futura manifestação em Cristo. Por isso, foi proibido aos judeus, de forma absoluta, abusarem desse pretexto, fazendo para si representação da Divindade sob figura humana.
O próprio propiciatório, onde, sob a Lei, Deus manifestou a presença do seu poder, foi de tal modo construído, que indicava ser a seguinte a mais excelente visão da Divindade: Ela ocorre quando as mentes são alcançadas acima de si mesmas, em admiração uma vez que os Querubins, de asas estendidas, ocultavam a Deus, o véu o cobria e o próprio lugar, tão escondido, de si mesmo o ocultava (Ex 25.17,18,21). Portanto, salta aos olhos que os que tentam defender uma imagem de Deus ou de santos, citando o exemplo desses Querubins, estão enlouquecidos. Suplico, pois: Que significavam essas imagenzinhas senão que não existem formas apropriadas pelas quais se possam representar os mistérios de Deus? Elas foram feitas para, velando com as asas o propiciatório, impedir não só que os olhos humanos vissem a Deus, mas também com quaisquer de todos os outros sentidos e, dessa forma, pusessem um paradeiro à temeridade dos homens.
Além disso, os Profetas, quando falam dos Serafins que lhes apareceram em visão, mostram-nos com a face velada e, com isso, dão-nos a entender que o fulgor da glória divina é tão grande, que os próprios anjos são impedidos de ser vistos em direta contemplação, e as chispas de glória que refulgem são subtraídas aos nossos olhos.
Todos os que julgam com acerto reconhecem, contudo, que os Querubins, de que estamos tratando agora, pertencem à antiga tutela da Lei. Portanto, é absurdo citá-los como exemplo que sirva à nossa época, uma vez que já passou a fase infantil à qual esses rudimentos haviam sido destinados (Gl 4.3).
Certamente, é vergonhoso Ter de reconhecer que os escritores profanos são intérpretes mais capazes da Lei do que os papistas. Juvenal, por exemplo, zombando, censura os judeus que adoravam as puras nuvens e o cume do céu. Certamente, Juvenal fala de modo pervertido e ímpio. No entanto, quando nega existir qualquer efígie divina, fala de modo mais verdadeiro que os papistas, que dizem haver, entre os judeus, alguma representação visível de Deus.
Que os judeus, com entusiástica prontidão, se tenha atirado repetidas vezes, a buscar ídolos para si, com a mesma forma de abundante manancial de águas borbulhantes, aprendemos do fato de ser grande a propensão da nossa mente para com a idolatria. Por isso, atirando contra os judeus a pecha de erro que é comum a todos os homens, não durmamos o sono mortal, iludidos pelas vãs seduções do pecado.
4. A Bíblia condena imagens e representações de Deus
Ao mesmo fim se detinha a seguinte afirmação: Os ídolos dos povos são prata e ouro, são obras das mãos dos homens (Sl 115.4; 135.15), pois o Profeta conclui que não são deuses não só por causa da sua materialidade cuja imagem é de ouro e prata mas deixa claro ainda que é inútil produto da imaginação tudo quanto concebemos a respeito de Deus, pelo nosso próprio sentir. Refere-se ao ouro e à prata, antes que ao barro ou à pedra, para que nem o esplendor, nem o valor nos levem a reverenciar os ídolos. Finalmente, conclui, dizendo que nada existe que tenha menos aparência de verdade do que serem os deuses feitos de qualquer espécie de matéria morta!
Ao mesmo tempo, o Profeta insiste neste ponto: Que os mortais são levados por grande e louca temeridade quando, de maneira precária, conseguindo alento fugaz de instante a instante, têm a ousadia de conferir aos ídolos a dignidade de Deus. O homem se vê obrigado a confessar que é uma criatura efêmera e, não obstante, quer que seja tido por Deus um metal que ele mesmo transformou em deidade! Pois, como nasceram os ídolos senão da desvairada imaginação dos homens?
Justíssima é a zombaria de Horácio, poeta profano, que disse:
Eu era outrora um tronco de figueira, um inútil pedaço de lenho. Quando um artesão, incerto se deveria fazer um banco, preferiu fazer de mim um deus.
Deste modo, um homenzinho terreno, cuja vida se extingue quase a cada instante graças à sua arte transfere o nome e a dignidade de Deus a um tronco sem vida!
Porém, uma vez que esse epicureu brincalhão a fazer, a fazer gracejo, não deu importância a religião alguma, deixando de lado as suas brincadeiras e as de outros, mais do que isso, traspasse-nos a censura do Profeta (Is 44.15-17), quando afirma que são excessivamente insensatos os que, de um mesmo tronco de árvore, aquecem-se, acendem o forno para assar pão, assam ou cozinham a carne, e do resto fazem um deus, diante do qual se prostram suplicantes a orar. Do mesmo modo, em outro lugar (Is 40.21), não só os acusa como réus perante a Lei, mas também os censura pelo fato de não terem aprendido, dos fundamentos da terra, que, na verdade, nada é mais absurdo do que desejar reduzir Deus, que é imensurável, à medida de cinco pés! Essa monstruosidade que provoca repugnância à ordem da natureza, revela-se como natural nos costumes dos homens.
Devemos Ter em mente que, com freqüência, as superstições são referidas como obras das mãos dos homens, e carecem de autoridade divina (Is 2.8; 31.7; 37.19; Os 14.3; Mq. 5.13), para que se estabeleça o seguinte: Que todas as formas de culto que os homens inventam por si mesmos, são abomináveis diante de Deus.
No Salmo 115, o Profeta dá ênfase à loucura que significa o fato de homens a tal ponto dotados de inteligência saberem que todas as coisas são movidas só pelo poder de Deus e, no entanto, implorarem auxílio de coisas inanimadas e destituídas de sensibilidade. Mas, pelo fato de a corrupção da natureza conduzir a demência tão grosseira, tanto os povos todos quanto cada indivíduo, em particular, o Espírito Santo, finalmente, fulmina com a seguinte maldição: Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e todos os que neles põem a sua confiança (Sl 115.8). Notemos também que são proibidas não só gravuras mas também imagens esculpidas e, com isso, refuta-se a improcedente exceção dos gregos, pois pensam que se saem muito bem se não fazem imagem de escultura, que representem a Deus, ao mesmo tempo em que se divertem fazendo gravuras desenfreadamente mais do que qualquer outra gente. Pois o Senhor proíbe não apenas que se faça imagem Dele em forma de estátua, mas também que qualquer representação Dele seja modelada por qualquer tipo de artista, visto que, desse modo, Ele é representado de maneira inteiramente falsa e com grave ofensa à sua majestade.
5. A Bíblia não dá ocasião a nenhum tipo de representação de Deus
Sei, certamente, que é mais do que vulgarmente popularizado o refrão que diz: As imagens sã os livros dos analfabetos , e isto foi dito por Gregório, o Grande. Contudo, o Espírito de Deus fala de maneira muito diferente, e se Gregório tivesse estudado esta matéria nessa escola, jamais teria dito o que disse.
Portanto, quando Jeremias (10.34) declara que o lenho é o preceito do orgulho, e Habacuque (2.18) ensina que a imagem fundida é a mestra da mentira, certamente devemos deduzir dessas expressões a seguinte doutrina: Que é tolo e, mais ainda, mentiroso tudo quanto os homens aprendem a respeito de Deus por meio das imagens.
Se alguém objetar dizendo que os Profetas repreendiam os que abusavam das imagens para ímpias superstições, sou obrigado a admiti-lo, sem dúvida. Contudo, acrescento: O que é notório a todos é que os Profetas condenam o que os papistas sustentam como seguro axioma, ou seja, para os papistas as imagens fazem as vezes de livros. Os Profetas, porém opõem o Deus verdadeiro às imagens, como coisas contrárias e que jamais podem conciliar-se.
Nas poucas porções bíblicas que acabei de citar, impõe-se a seguinte conclusão: Uma vez que o Deus verdadeiro, que os judeus adoravam, é um e único, de maneira pervertida e enganosa se inventam figuras visíveis que representam a Deus e, por isso, acabam miseravelmente iludidos todos os que buscam conhecer a Deus por meio de imagens.
Se não fosse mentiroso e espúrio todo e qualquer conhecimento de Deus que se busca nas imagens, os Profetas não o teriam condenado de modo tão generalizado. Por isso, sustento o seguinte: Quando ensinamos que é vaidade e enganoso os homens tentarem representar Deus por meio de imagens, não fazemos outra coisa senão referir, palavra por palavra, o que os Profetas disseram.
6. Opinião de certos representantes da patrística contra as imagens
Além disso deve-se ler o que Lactâncio e Eusébio escreveram a respeito desse assunto, pois eles não têm a menor dúvida de que as imagens que se vêem, são todas de seres mortais. Do mesmo modo se expressou Agostinho que, taxativamente, declara como ato abominável não só o adorar imagens, mas também levantá-las a Deus. E ele não está dizendo outra coisa senão repetindo o que muito antes foi declarado no Concílio de Elvira, cujo cânon trinta e sei diz o seguinte: Resolveu-se que não se tenha nos templos representações pictóricas, de modo que não se pinte nas paredes os que se cultua ou se adora.
Deve-se lembrar especialmente o que o mesmo Agostinho cite de Varrão e confirma com a sua autoridade. Diz ele: Os primeiros que introduziram imagens dos deuses, de um lado, removeram o temor e de outro acrescentaram o erro. Se isso tivesse sido dito só por Varrão, talvez tivesse pouca importância. Porém, ainda assim, devíamos sentir-nos envergonhados pelo fato de um pagão, como que tateando no escuro, Ter alcançado esta luz, isto é, Ter chegado à conclusão de que as imagens corpóreas são indignas da majestade de Deus, porque diminuem o temor dos homens e aumentam o seu erro. Os próprios fatos atestam, de maneira incontestável, que o dito de Varrão é sábio e verdadeiro. Por isso, Agostinho, tomando-o de empréstimo, repete-o como seu. E, no começo, Agostinho insiste em dizer que os primeiros erros a respeito de Deus, erros em que os homens se enredaram, não começaram com as imagens, porém, que uma vez introduzidas (na prática), aviltaram-se ainda mais. Em conseqüência, por esse motivo, o temor de Deus não só diminuiu, mas, até mesmo, se extinguiu, visto que na estupidez das imagens e na sua infeliz e absurda invenção, pode-se facilmente desprezar a majestade divina. Oxalá não comprovássemos, pela experiência, quão verdadeira é esta última afirmação!
7. As imagens do romanismo são inaceitáveis
Por essa razão, se os papistas tiverem um pouco de pudor, não digam mais, de agora em diante, que as imagens são os livros dos analfabetos, porque esta afirmação está escancaradamente refutada por numerosos testemunhos da Escritura. Na verdade, mesmo que eu lhes concedesse isso, nem ainda assim, certamente, tirariam muito proveito em defender seus ídolos, pois é notória a espécie de monstruosidade que eles obrigam o povo a aceitar em lugar de Deus! De fato, que são as pinturas ou estátuas que dedicam aos santos, senão corruptíveis exemplares de luxúria e obscenidade, a ponto de merecer castigo alguém que quisesse imitá-los? De fato, os lupanares mostram as meretrizes vestidas com mais decoro e pudor, do que os templos mostram aquelas santas que querem ser aceitas por virgens! As vestes que inventam para os mártires em nada são mais decentes. Portanto, vistam seus ídolos pelo menos de modesta decência para, com um pouco mais de decoro, poderem sofismar dizendo que as imagens são livros de alguma santidade.
Porém, diremos também que esta não é a maneira de ensinar o povo fiel nos lugares sagrados, povo que Deus quer que seja instruído com outro tipo de doutrina. Deus ordenou que aí, nos templos, se proponha uma doutrina comum a todos, na proclamação de sua Palavra e nos sagrados mistério. Os que são levados pelos olhos à contemplação de ídolos, em derredor revelam que seu espírito está voltado bem pouco diligentemente para esta doutrina!
A quem, no entanto, os papistas chamam de ignorantes e cuja obtusidade não lhes permite ser ensinados senão só pelas imagens? Na verdade, chamam de ignorantes àqueles a quem o Senhor reconhece como seus discípulos, aos quais considera dignos da revelação de sua celeste sabedoria e que deseja sejam instruídos os mistérios salvíficos do seu Reino. Certamente, admito que, na atual situação, não poucos são os que não podem dispensar as imagens como livros. Contudo, pergunto: De onde vem tal obtusidade senão do fato de serem roubados desta doutrina que, sozinha, é apta para instruí-los? E não foi por outra razão que os que presidiam às igrejas deixaram com os ídolos a função de ensinar, senão pelo fato de os próprios ídolos serem mudos! Paulo afirma que, mediante a pregação do Evangelho, Cristo é apresentado ao vivo e de certo modo é crucificado aos nossos olhos (Gl 3.1).
Qual seria o objetivo de, nos templos, erguerem-se, por toda parte, tantas cruzes de madeira, de pedra, de prata e de ouro, se fosse ensinado honesta e fielmente que Cristo morreu na cruz para tomar sobre si a nossa maldição (Gl 3.13), sacrificando o próprio corpo para expiar nossos pecados (Hb 10.10) e lavá-los com o seu sangue (Ap 1.5), enfim, para reconciliar-nos com Deus, o Pai? (Rm 5.10). Só desse fato poderiam aprender mais do que mil cruzes de madeira ou de pedras (poderiam ensinar), visto que os avarentos, talvez, fixam os olhos e a mente nas cruzes de ouro ou de prata, mais do que em quaisquer palavras de Deus.
8. Do desejo que os homens têm de ver a Deus, de modo tangível, vem a feitura de imagens
No que se refere à origem dos ídolos, o consenso público recebe virtualmente o que está contido no livro de Sabedoria, de Salomão (14.15), ou seja, que os primeiros autores dos ídolos são os que conferiram esta honra aos mortos, com o propósito de cultivarem, de maneira supersticiosa, a memória deles. E, sem reserva, admito que esse mui antigo costume tenha sido pervertido e não nego Ter sido ele uma tocha pela qual se acendeu a inflamada paixão dos homens para com a idolatria. Contudo, não concordo com a idéia de que tenha sido a primeira fonte desse mal.
Ora, que os ídolos já estivessem em uso, quando veio a prevalecer este anseio desmedido de consagrar imagens de mortos, prática da qual se faz menção constante nos escritores profanos, evidencia-se do que diz Moisés. Quando ele conta que Raquel havia furtado os ídolos de seu pai (Gn 31.19), não fala de outra coisa senão de um vício generalizado. É lícito, pois, concluir desse fato que a imaginação do homem é uma perpétua fábrica de ídolos.
Depois do dilúvio, houve como que um renascimento do mundo. Entretanto, não se passaram muitos anos para que os homens, para seu prazer, inventassem deuses para si. É de crer-se que, estando ainda vivo o santo patriarca, os seus descendentes se tenham entregado à prática da idolatria, de maneira que ele, com os próprios olhos, visse a terra ser poluída pelos ídolos, corrupção esta que Deus, fazia pouco tempo, havia punido com juízo tão horrível! Ora, já antes de Abraão nascer, Terá e Naor adoravam a deuses falsos, como o atesta Josué (24.2). Se a descendência de Sem se degenerou tão cedo, que haveremos de dizer dos descendentes de Cão, que haviam sido amaldiçoados, bem antes, na pessoa do próprio pai?
É assim que acontece, na verdade. Como a mente do homem está abarrotada de orgulho e de temeridade, ele ousa imaginar a Deus segundo o seu modo de ser. Como a mente do homem é embotada, mais do que isso, como ele é levado de cambulhada pela mais crassa ignorância, imagina ele, para o lugar de Deus, a irrealidade e a aparência vazia.
A estes males, acrescenta-se nova iniqüidade: A de que o homem tenta exibir a Deus na obra que faz, pois concebe a Deus do modo como o sente. Daí, sua mente gera o ídolo e suas mãos o dão à luz. Portanto, a imagem do ídolo é a seguinte: Os homens não crêem que Deus esteja com eles, se não virem a Deus de forma concreta. Revela isso o exemplos dos israelitas: Não sabemos, dizem eles, o que aconteceu a esse Moisés. Faze para nós deuses que vão adiante de nós (Ex 32.1). Na verdade, ele sabiam que era Deus aquele cujo poder tinham experimentado em tantos milagres; não confiavam, porém, que Deus estivesse perto deles, a menos que, com seus olhos, pudessem ver uma representação corpórea de Deus, uma representação que atuasse como testemunho de um Deus que os dirigia. Na verdade, os israelitas queriam reconhecer que Deus, através de uma imagem, ia adiante deles, guiando-os pelo caminho.
A experiência de todos os dias nos ensina que a carne está sempre inquieta, até conseguir uma representação fantasiosa semelhante a sim mesma, representação com a qual se console de maneira vã, como se estivesse diante de uma imagem real de Deus. Para obedecerem a esta cega obsessão, em quase todos os séculos desde que o mundo foi criado, os homens ergueram representações visíveis, por meio das quais acreditavam ver a Deus com os olhos carnais.
9. O uso de imagens conduz à idolatria
Uma vez feitas as imagens que representam Deus, segue-se de pronto a sua adoração, porque nelas os homens pensam contemplar a Deus e nelas também O adoram. Como resultado disso, fixando nelas tanto os olhos quanto o espírito, os homens começaram a embrutecer-se cada vez mais, deslumbrando-se com elas e nutrindo por elas admiração, como se nelas houvesse qualquer coisa de divindade!
Por isso, quando os homens, na forma de imagens, fazem uma representação tanto de Deus quanto da criatura e prostra-se diante dela para venerá-la, é porque já foi fascinado por certa superstição. Foi por essa razão que o Senhor proibiu não somente levantar-se estátuas modeladas para representá-lo, mas proibiu consagrarem-se gravuras de qualquer espécie, para serem usadas como objetos de adoração. Pela mesma razão, também, no preceito da Lei, junta-se outra parte a respeito da adoração dessas representações, pois tão logo foi inventada essa forma visível de Deus, o passo seguinte foi o de atribuir-lhe poder, Os seres humanos são néscios a tal ponto, que identificam Deus com tudo o que o representa, e, por isso, não pode acontecer outra coisa senão adorarem a essa representação de Deus! É supérfluo discutir se simplesmente se adora o ídolo ou se adora a Deus no ídolo, pois, seja qual for o pretexto, quando se proporcionam honras divinas a um ídolo, é sempre idolatria. E pelo fato de Deus não querer ser cultuado de maneira supersticiosa, recusa-se a Ele aquilo que se oferece aos ídolos.
Atentem para isso os que andam em busca de míseros pretextos para defender essa idolatria abominável, na qual a religião verdadeira, por muitos séculos, tem estado afundada e subvertida. Embora digam que as imagens não são consideradas como seres divinos. Os próprios judeus não eram tão absurdamente obtusos, que não se lembrassem de que era Deus aquele por cuja mão tinham sido tirados do Egito (Lv. 26.13), e isso antes de fazerem o bezerro de ouro (Ex 32.4). Ao contrário, afoitamente o povo concordou em proclamar, com Abraão, que aqueles que eram os deuses por meio dos quais tinham sido libertados da terra do Egito (Ex 32.4,8), querendo dizer, com não duvidoso sentido, que o Deus libertador lhes fosse conservado, contanto que pudessem contemplá-lo andando na frente, em forma de bezerro!
E não devemos crer que eram tão boçais, que não entendessem que Deus não era outra coisa senão lenhos e pedras, pois embora mudassem as imagens à vontade, tinham em mente sempre os mesmos deuses, e muitas eram as imagens de um único Deus. Porém, eles não imaginavam existirem para si tantos deuses quantas eram a multidão dessas imagens. Além disso, dia após dia, consagravam novas imagens e, contudo, nem pensavam estar assim constituindo novos deuses.
Leiam-se as justificações que Agostinho refere, justificações que os idólatras do seu tempo usavam como pretexto. As pessoas comuns, quando eram acusadas de praticar a idolatria, respondiam que não adoravam as imagens, mas ao contrário, adoravam a divindade que, invisível, habitava nelas. Aqueles que, segundo o próprio Agostinho, praticavam uma religião mais refinada, diziam que não adoravam nem a imagem, nem a divindade que ela representava, porém, na representação material viam um sinal da divindade que deviam cultuar.
Que diremos? Todos os idólatras, tanto entre judeus como entre os gentios, foram motivados a praticar a idolatria da forma já referida, ou seja, não estando contentes com uma representação espiritual de Deus, julgavam que, por meio de imagens, adquiriram compreensão mais segura e mais íntima da divindade. Uma vez que se agradaram dessa grosseira representação que imitava a Deus, não houve mais fim (desta loucura) até que, finalmente iludidos sucessivamente por novas invenções fantasiosas -, começaram a pensar que Deus mostra o seu poder nas imagens. Mais do que isso, não somente os judeus foram convencidos de que, sob essas imagens, adoravam ao Deus eterno, o único e verdadeiro Senhor do céu e da terra, mas também os gentios que, do mesmo modo, adoravam aos seus deuses, ainda que fossem deuses falsos que, no entanto, imaginavam habitarem no céu.
10. O abuso no culto às imagens
Todos os que negam que esta prática idólatra existiu no passado, que ainda existe em nossos dias, mentem desvaladamente. Então, por que se ajoelham diante das imagens? Por que, quando se preparam para a prece, voltam-se para elas como se falassem aos ouvidos de Deus? Com verdade, fala Agostinho, quando diz: Ninguém ora ou adora com olhos postos numa imagem, sem ser afetado a ponto de não pensar que ela o ouve ou que ela o ouve ou que ela lhe dará aquilo que deseja. Por que há tão grande diferença entre as imagens de um mesmo Deus, de forma que, sendo desprezada uma ou sendo honrada de maneira vulgar cerquem outra de honrarias solenes? Por que se cansam fazendo peregrinações para cumprir votos, indo visitar imagens, se têm imagens semelhantes em seu próprio lar? Por que hoje se batem a favor delas, de maneira acirrada, a ponto de provocarem carnificina e massacre, como se debatessem por seus altares e lareiras, dando a entender que toleram mais facilmente que lhes tirem o Deus único, que são seus ídolos?
E ainda não estou mencionando os erros grosseiros do vulgacho, que são quase infinitos e dominam o coração de todos. Mencionei apenas os erros que eles mesmos confessam quando querem, especialmente, safar-se da pecha de idolatria. Eles dizem: Não chamamos às imagens de nossos deuses. Nem os judeus nem os gentios chamavam deuses outrora. E, no entanto, os profetas não paravam de repreender as fornicações dos judeus com a madeira e a pedra (Jr. 2.27; Ez 6.3-6; Is 19.20; Hc. 18-19; Dt 32.27), fornicações que são práticas diárias daqueles que querem ser tidos por cristãos, isto é, que adoram a Deus de forma carnal na madeira e na pedra!
11. O sofisma do culto de Latria e de Dulia
Não ignoro, nem se pode disfarçar, que eles fogem do problema, criando uma distinção enganadora, distinção de que faremos menção, novamente, de forma mais completa, mais adiante. Dizem eles que o culto que prestam às imagens é eidoludeleian (=serviço à imagem) e não eidolatria (=adoração de imagem). Falam assim, quando ensinam que, sem ofensa a Deus, pode-se atribuir às representações de escultura e pictória o culto a que dão o nome de dulia. Portanto, julgam-se sem culpa se são apenas os servos da imagem, e não adoradores também. Como se o servir não fosse mais importante que o adorar!
No entanto, enquanto encontram refúgio num termo grego, se contradizem a si mesmos de modo infantil. Para os gregos, o termo latreuein nada mais significa do que adorar, por isso, o que dizem eles equivale, exatamente, a confessarem que cultuam suas imagens, mas sem lhes prestar culto! E não é preciso que eles façam objeção, dizendo que lhes preparo armadilhas com palavras, porque eles mesmos, tentando espalhar trevas diante dos olhos dos simples, revelam a própria ignorância! Por isso, por mais eloqüentes que sejam, eles jamais conseguirão provar-nos que uma e a mesma coisa são duas!
Insisto para que mostrem, de forma objetiva, a diferença (que há entre as duas referidas palavras), para que vejamos que eles são diferentes dos idólatras antigos. Ora, assim como um adúltero ou homicida não pode fugir à acusação de crime, dando nomes diferentes ao crime que cometeu, do mesmo modo é absurdo absolver estes do crime de idolatria, mediante a sutil invenção de um termo, visto que, na prática, eles em nada são diferentes dos idólatras que eles mesmos são obrigados a condenar! Na verdade, eles estão longe de separar sua prática da prática desses idólatras. Sim, a sua causa está tão longe de ser diferente da causa desses idólatras, que a fonte de todo o mal se baseia no desordenado desejo que eles têm de imitá-los, quando na sua imaginação não apenas concebem para si, mas com suas mãos confeccionam os símbolos por meio dos quais representam a Deus.
12. Função e limitação litúrgica da arte
Entretanto, não alimento essa superstição que me impeça de admitir, de todo, quaisquer imagens. Pelo fato de a escultura e a pintura serem dons de Deus, defendo o puro e legítimo uso tanto de uma quanto da outra, para não acontecer que esses dons que o Senhor nos concedeu para a sua glória e para o nosso bem -, não só não sejam poluídos por ímpio abuso, mas, também, não se transformem na nossa ruína!
Dizemos não ser permitido representar-se a Deus, de forma visível, porque Ele mesmo proibiu (Ex 20.4; Dt 5.8) e, portanto, não se pode fazer isso, sem degradar a sua glória. E para não pensarem que só nós sustentamos esta posição, os que são versados nos escritos de autores sóbrios verificarão que eles sempre reprovaram essa prática nos seus escritos. Porque, se não é permitido representar a Deus por meio de uma efígie, muito menos é permitido cultuar a efígie ou cultuar a Deus nela.
Portanto, sobra-nos a liberdade de esculpirmos ou pintarmos só aquilo que está diante dos nossos olhos, de forma que a majestade de Deus, que está muito acima da percepção dos nossos olhos, não se corrompa por meio de fantasiosas representações. Nesta classe de coisas que se podem representar pela arte estão incluídas, em parte, histórias e fatos acontecidos, em parte, imagens e formas corpóreas que não estejam ligadas a eventos consumados. As histórias e os fatos têm aplicação no ensinar e no advertir; as imagens e as formas corpóreas, por sua vez, creio que a sua utilidade não vai além do deleite (que nos podem trazer). E, apesar disso, salta aos olhos que quase todas as imagens exibidas até o presente nos templos -, são desse tipo. Desse fato pode-se concluir que elas foram colocadas nos templos não em função de julgamento ponderado ou de sábia decisão, mas em função de insensata e precipitada paixão!
Deixo de focalizar aqui o quão sem propósito e indecente têm sido essas representações, e quão licenciosamente os pintores e estatuários têm se mostrado sensuais (nos trabalhos que fazem), como já referi pouco antes. Estou frisando apenas que mesmo que nada de impróprio exista nessas obras, todavia elas revelam que nenhum valor têm para ensinar.
13. Como começou o uso de imagens na história da igreja
Porém, pondo de lado essa distinção também, vejamos de passagem ter, nos templos cristãos, quaisquer imagens, quer sejam as imagens quem expressam histórias ou fatos passados, quer sejam as imagens que representam corpos humanos.
Lembremos-nos, primeiramente se a autoridade da Igreja Primitiva tem alguma importância para nós -, que, por um período de quase quinhentos anos, durante os quais mais florescia a religião e a doutrina pura era mais viçosa, os templos cristãos eram geralmente vazios de imagens. Quando a pureza do ministério não se tinha ainda degenerado, as imagens foram introduzidas, em primeiro lugar, como ornamentos dos santuários. Não discutirei qual foi a razão que tiveram os primeiros autores dessa prática. Se, porém, compararmos era com era, veremos que eles haviam perdido muito da integridade daqueles que (no passado) se recusaram a usar imagens.
Quê? Devemos pensar que os santos pais (mais antigos) haviam deixado a Igreja ficar, por tanto tempo, vazia dessa prática, que eles julgavam útil e salutar? Na verdade, porém esses pais (mais antigos) repudiavam essa prática mais por decisão e reflexão, que por ignorância ou negligência, porque viam que nessa prática não havia nada, nem um mínimo de utilidade, porém, representava muito perigo. Agostinho também atesta isso com palavras claras, quando diz: Quando, nestes pedestais se colocam, essas imagens em exaltada elevação, para que, por causa da própria semelhança que elas têm com membros e sentido animados se bem que lhes falte sensibilidade e alento -, chamem a atenção dos que oram e dos que oferecem sacrifícios, elas afetam as mentes fracas, de modo que pareçam ter vida e respirar. Em outro lugar acrescenta: Pois essa representação de membros faz o seguinte e até obriga: A mente que vive em um corpo, julgue ser animado um corpo que vê muito semelhante ao seu. E mais adiante: As imagens valem mais para desviar a alma infeliz, que para assisti-la, visto que possuem boca, olhos, ouvidos, pés, mas não falam, não vêem, não ouvem e não andam.
Esta parece ser a razão pela qual João quis que nos guardássemos não somente do culto aos ídolos, mas também dos próprios ídolos (1 Jo 521). Em vista da horrível insânia que até agora tem dominado o mundo extinguindo quase toda a piedade -, temos experimentado, mais desmedidamente, que, tão logo as imagens são colocadas nos templos, levanta-se o pendão da idolatria, porque não se pode moderar a loucura dos homens que, prontamente, os leva à prática de cultos supersticiosos.
Ora, mesmo que o perigo não fosse tão iminente, entretanto, começo a refletir sobre o uso a que os templos foram destinados e, de uma ou outra forma, me parece indigno de sua santidade os templos acolherem outras imagens, ao invés de acolher aquelas vivas e representativas, que o Senhor consagrou em sua Palavra. Refiro-me ao Batismo e à Santa Ceia, juntos com outras cerimônias nas quais o importante não é serem vistas com os olhos, mas que nos afetem mais vividamente, de modo que não exijam outras imagens formadas pelo engenho dos homens. O incomparável bem das imagens consiste no fato de, se dermos crédito aos papistas, eles não têm compensação nenhuma que possa ressarci-los da perda!
14. Argumentos falsos que servem de base a uma decisão de Nicéia de 787
Penso que já teria falado mais do que o suficiente a respeito deste assunto se, de certo modo, o Concílio de Nicéia não tivesse lançado mão sobre mim. Não me refiro ao famosíssimo Concílio reunido por Constantino, o Grande, mas ao que foi realizado há oitocentos anos por ordem e sob os auspícios da Imperatriz Irene. Ora, esse Concílio decretou não somente que devem ter imagens nos tempos, mas também que elas devem ser veneradas. O que quer que eu tenha dito pois (sobre este assunto), a autoridade desse Concílio gerará preceito em contrário. No entanto, para falar a verdade, esse fato não me preocupa tanto, quanto à evidência que os leitores terão do quanto se extraviou a sanha dos que foram mais ansiosos para com as imagens, do que convinha a cristãos!
Porém, antes de mais nada, livremos-nos primeiramente dos que hoje defendem o uso das imagens, alegando o apoio desse Concílio Niceno. Há um livro sob o nome de Carlos Magno, de caráter refutatório que, a julgar pelo estilo, parece ter sido escrito na mesma época (do Concílio). Nesse livro faz-se referência às opiniões dos bispos que estiveram presentes ao referido Concílio e aos argumentos com que lutaram nas discussões.
João, o legado do Oriente, disse Deus criou o homem à sua imagem e, por isso, devemos concluir que é preciso ter imagens. Ele mesmo, na seguinte afirmação, opinou que as imagens nos são recomendadas: Mostra-me a tua face, pois ela é formosa (Ct. 2.14). Outro, para provar que se devem colocar imagens nos altares, citou o seguinte testemunho: Ninguém acende uma candeia e a põe debaixo do módio (Mt 5.15). Um outro, com o objetivo de demonstrar que a contemplação das imagens nos é útil, citou um versículo dos Salmos: Estampada foi sobre nós a luz da tua face, ó Senhor (Sl 4.6). Um outro recorreu à seguinte analogia: Como os Patriarcas fizeram uso dos sacrifícios dos gentios, do mesmo modo as imagens dos santos devem ocupar para os cristãos o lugar dos ídolos dos povos. Para esse mesmo propósito, torcem a seguinte oração: Senhor, amei a formosura da tua casa (Sl 26.8). Porém, especialmente engenhosa é a seguinte interpretação: Como temos ouvido, assim também temos visto. Portanto, para eles, Deus é conhecido não pelo ouvir da Palavra, mas também pela contemplação das imagens! Semelhante é a agudeza do bispo Teodoro: Maravilhoso, diz ele, é Deus nos seus santos (Sl 68.35) e, daí, diz-se em outro lugar: Quanto aos santos que estão na terra (Sl 16.3). Portanto, concluem eles, isso deve referir-se às imagens!
Afinal de contas, são tão disparatadas as suas parvoíces que até me envergonho de referi-las.
15. A absurda defesa dos que defendem a adoração dos ídolos
Quando discutem a respeito da adoração de imagens, citam, como adoração a Faraó (Gn 47.10), a bênção que Jacó deu a esse monarca; citam também a vara de José (Gn 47.31 e Hb 11.21), e a coluna que Jacó levantou (Gn 28.18). Na verdade, quando referem esta última, não só pervertem o sentido da Escritura, mas também se apóiam naquilo que não se lê em lugar algum. Aduzem mais: Adorai o escabelo de seus pés (Sl 99.5) e adorai em seu santo monte (Sl 99.9), e também, A tua face suplicarão todos os ricos do povo (Sl 45.12). Para eles, todas essas citações são provas absolutamente firmes em favor da idolatria!
Se, para zombar dos que defendem a adoração das imagens, alguém quisesse fazer deles uma caricatura ridícula, poderia, porventura, reunir tolices maiores e mais grosseiras do que as acima referidas?
E, de qualquer modo, para não haver dúvida nenhuma, Teodósio, bispo de Mira, confirma tão a sério com base no sonho de seu arcediago -, que as imagens devem ser adoradas, como se estivesse presente um oráculo celeste.
Agora, que saiam a campo esses defensores das imagens e nos pressionem com o decreto do Concílio Niceno retro referido, como se os pais veneráveis desse Concílio não anulassem toda a confiança que se deveria ter neles, não só por portarem a Escritura de modo tão infantil, mas também por submetê-la a tão execrável mutilação!
16. Ensinos e práticas blasfemas e absurdas a respeito da idolatria
Trato agora dos prodígios que a impiedade tem ousado manifestar. É de causar surpresa duas vezes maior verificar-se que não se tem clamado contra eles, com o máximo de repúdio de todos! É oportuno trazer a público esta ímpia loucura para que se retire, ao culto das imagens, pelo menos o pretexto de ser um culto antigo, como os papistas alegam!
Teodósio, bispo de Amoria, pronuncia anátema (=maldição) contra todos os que se opõem à adoração das imagens. Um outro atribui todas as calamidades da Grécia e do Oriente ao crime de não se adorarem imagens! Em conseqüência disso, os Profetas, os Apóstolos e os Mártires no tempo dos quais não se usavam imagens -, mereciam ser castigados!
Acrescentam ainda que, se vai ao encontro da imagem do imperador com formigações aromáticas e incenso, as imagens dos santos são muito mais dignas dessa honra!
Constâncio, bispo de Constância, em Chipre, professa porém, abraçar as imagens de modo reverente e confirma que ele tributou a elas o culto devido à Trindade, e a todos os que tivessem a ousadia de se recusar a fazer o mesmo, ele anatematizaria (amaldiçoaria) e relegaria à companhia dos Maniqueus e dos Marcionitas. E, para que não se pense que essa era a opinião de um indivíduo só, os demais também concordaram!
João, o legado dos do Oriente, levando mais longe ainda a sua ousadia, adverte que seria preferível acolherem-se todos os lupanares, em uma cidade, a rejeitar-se o culto das imagens!
Finalmente, o Concílio Niceno estatui, pelo consenso de todos, que os Samaritanos eram os piores de todos os hereges, porém, que piores que os Samaritanos, eram os que combatiam as imagens! Além disso, para que não faltasse à peça o seu solene Aplauso, acrescenta-se à cláusula o seguinte: Regozijem-se e exultem os que, tendo a imagem de Cristo, lhe oferecem sacrifícios.
Onde está, agora, a distinção entre latria e dulia com a qual eles costumam ofuscar os olhos de Deus e dos homens, uma vez que esse Concílio (Niceno) favorece tanto às imagens quanto ao Deus vivo?
Fonte: Extraído das Institutas de Calvino